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Reinaldo Azevedo

Intercept Brasil, Mariana Ferrer, decisão judicial e honras milionárias

Juiz Rudson Marcos e promotor Thiago Carriço de Oliveira, ambos do "caso Mariana Ferrer". O primeiro pede indenização de R$ 450 mil; o segundo, de R$ 300 mil - Reprodução/Twitter; Reprodução/Youtube
Juiz Rudson Marcos e promotor Thiago Carriço de Oliveira, ambos do "caso Mariana Ferrer". O primeiro pede indenização de R$ 450 mil; o segundo, de R$ 300 mil Imagem: Reprodução/Twitter; Reprodução/Youtube

Colunista do UOL

21/12/2020 06h57

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Leiam trecho de um texto publicado no site The Intercept Brasil. Volto sem seguida:

A Magistrada Cleni Serly Rauen Vieira, juíza substituta da 3ª Vara Cível da Comarca de Florianópolis, ordenou que nós editássemos nossa reportagem sobre o caso Mariana Ferrer em decisão liminar às vésperas do recesso do Judiciário. É isso mesmo que você leu. Uma juíza editou um texto jornalístico. Sem nem sequer nos ouvir. É um precedente perigoso pelo qual outras instâncias do Judiciário, a imprensa e a sociedade civil deveriam se interessar.

É comum que jornalistas se deparem, ao longo de suas carreiras, com pedidos de direito de resposta por parte de pessoas, empresas ou governos citados em reportagens. Jornalistas, é claro, erram. Quando isso acontece, os pedidos de resposta são publicados quando a justiça decide que são necessários. É a regra do jogo. Mas é absolutamente insano que um magistrado modifique e determine exatamente o que um texto jornalístico já publicado deve dizer. Controlar o que a imprensa deve publicar é prática das ditaduras.

Juiz, por princípio, não edita reportagem. No entanto, fomos obrigados a fazer as modificações para não tomarmos multa diária. E ainda corremos o risco de pagar, ao final do processo, R$ 450 mil ao juiz Rudson Marcos e R$ 300 mil ao promotor Thiago Carriço de Oliveira por danos morais. Para se ter ideia do absurdo do pedido feito pelos dois, em uma sentença de primeira instância, a justiça brasileira havia decidido que a mãe de um jovem de 17 anos que foi morto após ser entregue por militares do Exército a traficantes deveria receber apenas R$ 50 mil reais. Para Oliveira e Rudson Marcos, suas próprias honras valem, juntas, 15 corpos negros assassinados pela mão do estado.

Nosso erro: ter noticiado um julgamento que eles preferiam que seguisse restrito a uma sala de videoconferência, porque assim ninguém teria visto a humilhação que Mariana Ferrer sofreu. Violência psicológica que não é exceção nos nossos tribunais, como se viu esta semana em outro caso. Em uma vara de família de São Paulo, o juiz Rodrigo de Azevedo Costa disse coisas como "Não tô nem aí para a Lei Maria da Penha. Ninguém agride ninguém de graça". Para parte do Judiciário, esse tipo de coisa deve ficar longe dos olhos da população.

A reportagem original que denunciou a conduta de Costa publicou apenas três vídeos curtos de uma audiência que durou três horas e meia. Alguém dirá que é preciso assistir ao restante da sessão para buscar atenuantes para tamanha barbárie? Talvez parte do Judiciário espere que a imprensa agradeça quando magistrados tratam as vítimas mulheres com respeito. A isso dá-se outro nome: dever funcional. Ao jornalismo cabe denunciar os abusos.

Chama atenção um detalhe fundamental nessa história: nossa reportagem não trata das possíveis omissões e má conduta do juiz e do promotor do caso. Trata, isso sim, das humilhações perpetradas pelo advogado do acusado de estupro, Claudio Gastão da Rosa Filho, contra Mariana. Juiz e promotor agem como se texto e vídeo fossem sobre eles. Se, depois de publicada, a reportagem causou indignação e revolta contra as atitudes de Gastão e, por consequência, também pela falta de advertências enérgicas que pusessem fim ao episódio degradante que mais parecia uma inquisição, juiz e promotor têm que se entender com a opinião pública. Que, aliás, paga seus salários e da qual são servidores, e não senhores acima da crítica.
(...)
Íntegra do texto aqui

RETOMO
Vamos lá. Escrevi sobre esse caso pelo menos dois textos que colaboram para a elucidação do debate, quero crer. São eles:
- Mariana Ferrer 1: País vai ressuscitar os fantasmas do caso Ângela Diniz?
- Mariana Ferrer 2: Tão grave como o "estupro culposo" é o "por merecimento"

Juiz e promotor consideram que sua honra foi ofendida pelo Intercept Brasil porque o site teria apelado à expressão "estupro culposo" para designar a tese supostamente abraçada pelo representante do Ministério Público e admitida pelo magistrado. O TIB já se explicou a respeito, e restou claro que isso não aconteceu. Eu mesmo esclareci logo de cara aqui, conforme vai acima, que inexiste tal tipo penal. Disse mais: por inexistir, é importante, falando em tese, que não se atue como se existisse.

Desde sempre, a reportagem do site e dos veículos que trataram do assunto se fixaram na agressividade desmedida, contra Mariana, do advogado de defesa do acusado, sem que tenha havido — e as pessoas têm o direito de fazer esta avaliação — a reação proporcional de promotor, juiz e até mesmo do defensor público presente A reportagem do Intercept, com as intervenções impostas pela juíza, está aqui.

Este escriba, por exemplo, nem mesmo entrou no mérito da sentença. No que diz respeito ao caso, o meu ponto é este: é admissível que um tribunal assista àquelas cenas?

Mas não vou repetir argumentos. Eles estão nos dois textos acima. A minha questão, agora, é outra.

CONSEQUÊNCIAS GRAVES SEM OUVIR A PARTE
Considero grave, para a liberdade de imprensa e para a liberdade de expressão, que um juiz determine que uma reportagem seja alterada -- e tanto pior quando há simplesmente censura -- sem que a parte acionada nem sequer tenha sido ouvida.

Uma pergunta rápida de resposta óbvia: se tal prática se generaliza, que diferença haverá, então, entre os juízes de agora e aqueles censores que ficavam sentados nas redações, durante a ditadura, fazendo a revisão dos textos e decidindo o que podia e o que não podia ser publicado?

Como diria Camões, os amantes da censura são como "hidrópicos doentes", e o "beber lhe assanha a sede". A cada vez que se ultrapassa um tantinho a linha que separa a censura da liberdade de expressão, vem a vontade de ir um pouco adiante. Os casos vão se multiplicando país afora.

Jornalistas, por óbvio, não estão acima da lei. Mas também não podem estar abaixo, não é mesmo?, ainda que, no comando do país, tenhamos um líder irresponsável o bastante para açular os policiais militares contra a imprensa numa solenidade oficial, como se viu.

Pergunto, adicionalmente, se não há o risco de que o Judiciário funcione, nesses casos, como um Poder que intimida a imprensa. São muitas as práticas, hoje, que acabam, em verdade, agredindo fundamentos do Artigo 5º da Constituição, que é cláusula pétrea. Ainda voltarei ao caso, é certo. Mas chamo a atenção do próprio Judiciário, por exemplo, para a multiplicação de ações que dizem respeito à liberdade de imprensa e que tramitam em Juizado Especial Cível (JEC), o que concorre para tolher o pleno direito de defesa. Assim, chama-se "pequena causa" ao que é matéria constitucional, e o efeito é a intimidação.

Há mais nesse caso do Intercept. Honra, a rigor, não tem tradução monetária, é claro! Quando se estabelece um valor, é para simbolizar o agravo e o desagravo, certo? Se uma ação por danos morais, na modalidade ofensa à hora, chega a R$ 300 mil, a R$ 450 mil, parece-me evidente que a questão simbólica acaba tragada pela questão monetária.

Quem vencesse uma ação como essa não estaria apenas com a sua honra reparada, mas estaria efetivamente enriquecendo, formando patrimônio por intermédio de uma ação na Justiça. O eventual caráter, digamos, didático que poderia ter a punição obviamente se perderia.

A imprensa e o próprio Poder Judiciário, parece-me, estão obrigados a pensar essas questões. Ouvida a direção do Intercept, talvez a juíza tomasse a mesma decisão, não sei. O que me incomoda aí, confesso, é o fato de ela achar que isso era desnecessário.

"Ah, será que ela estava impedida legalmente de tomar a decisão, como Luiz Fux está impedido legalmente de suspender o juiz de garantias por liminar, sem o concurso do pleno (ver texto acima)? A resposta é "não". Ela podia fazer o que fez. O que me pergunto, e respondo, é se ela deveria ter feito o que fez quando está, obviamente, a lidar com matéria que tem prescrição constitucional. A resposta, obviamente, é não.

Além da letra da lei, há os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Seja para impor restrições à liberdade de imprensa, seja para pedir ou arbitrar indenizações.

Chegou a hora de as entidades que congregam jornalistas e veículos de comunicação se darem conta de que está havendo um esgarçamento do tecido que garante a liberdade de expressão.

O entulho autoritário que restava da Lei de Imprensa da ditadura tinha mesmo de cair. Mas precisamos ter a Lei de Imprensa da democracia. Sem ela, estamos todos expostos a solipsismos judiciais e ao arbítrio da vontade.

Se a vontade é boa, ótimo! Se não é, então é a liberdade que sai agredida.