Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Bolsonaro transfere suas culpas, e Faria é truculento com os governadores
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Fábio Faria, ministro das Comunicações, que já foi, vejam que coisa!, "dilmista", converteu-se ao bolsonarismo roxo. Era a esperança, segundo alguns, de haver um tanto de racionalidade no governo. Mas quê... Jair Bolsonaro tem um dom, já revelado também no caso Paulo Guedes: ninguém que seja melhor do que ele próprio consegue melhorá-lo. Mas ele consegue piorar os que resolvem servi-lo. É claro que estes não são vítimas. Fazem-no por gosto.
Faria foi ao Twitter e escreveu um troço boçal. Estava, claro!, referindo-se a João Doria, governador de São Paulo, mas preferiu usar um plural que atingiu a todos os governadores — notando que, ainda que individualizado fosse o ataque, já seria irresponsável o bastante no momento em que o país vive a pior fase da doença. Escreveu:
"Desmontam os hospitais de campanha, vão pra Miami 'sem máscara' comprar na Gucci, fazem coletiva todos os dias que ngm suporta mais e quebram a economia sem o menor pudor. Tiveram tempo e dinheiro sobrando do governo federal!"
Quais Estados tiveram dinheiro sobrando? Ele deveria demonstrar. Também o presidente, no Twitter, recorre a uma conta malandra, listando o total de repasses de verbas federais aos Estados, inclusive aqueles determinados pela Constituição, como observou Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul numa resposta. E o presidente, por óbvio, não especifica o total de impostos federais arrecadados pelos Estados — a maioria deles já quebrados.
Afirmar que os governadores tiveram tempo e dinheiro de sobra não é apenas uma pusilanimidade, uma vez que a pressão gerada pelo colapso do sistema de Saúde recai sobre eles. É também é uma mentira grotesca. Tempo para quê? Como evidencia a ministra Rosa Weber, na liminar que ordena que o governo federal volte a financiar leitos de UTI, a verdade é outra: no que diz respeito a essa questão, o Planalto deixou os Estados à mingua.
Faria está dizendo que o Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde) está mentindo? É falsa a conta, ministro, de que o governo federal financiava, em dezembro de 2020, 12.003 leitos de UTI e agora arca com o custo de apenas 3.187 — uma queda de 73,45% em dois meses, o que coincide com o momento mais grave da doença?
Despudorado é Faria ao acusar os governadores de quebrar a economia. O Brasil tem um dos piores quadros da doença no mundo sem jamais ter feito, de fato, lockdown. Tivemos algumas medidas de restrição, umas mais severas, outras menos. Mas não chegamos a extremos de economias muito menos atingidas. O que está em curso neste momento, e deveria contar com o apoio do governo federal, são medidas que buscam apenas redução de danos.
Manaus, diga-se, foi a cidade que mais se aproximou da pregação bolsonariana. Deu no que deu. Quanto mais o vírus circular, maior a chance de surgimento de cepas resistentes. A do Amazonas já se espalha pelo Brasil e já cruzou o Oceano.
Não existe mais nem mais a possibilidade de transferir doentes para unidades da federação com vagas ociosas. Porque vagas ociosas não há mais. Quebra a economia quem não reconhece a gravidade da doença, estimula a aglomeração, sabota os esforços de distanciamento social — que paralisia da economia não é — e espalha a indisciplina país afora.
É acintoso que o ministro dito "moderado" diga essa estupidez porque se pode imaginar, então, o que gostariam de fazer os radicais. Não tivesse o Supremo reiterado o que está na Constituição — a responsabilidade compartilhada entre os entes da Federação para adotar medidas restritivas —, e podemos imaginar como estaria, a esta altura, o sistema de Saúde.
Que triste papel cumpre esse rapaz! Chegou a ser visto, no passado, como uma liderança que, vamos dizer, renovava as elites conservadoras no país. Não por mim. Mas é o que diziam. E, como se sabe, foi um entusiasta do governo Dilma. Talvez não com a mesma ferocidade com que se mostra agora um defensor do governo Bolsonaro — certamente mais afinado com suas origens, suas tradições e seus interesses.
Sugiro a Faria que participe da próxima live de Bolsonaro e anuncie a culpa dos governadores. E aproveite para também sabotar o uso de máscara, como fez seu chefe na quinta passada, acusando, ainda, os chefes dos Executivos estaduais de "quebrar a economia" com as medidas restritivas. Que defenda claramente que a vida volte ao normal.
Por que não faz isso? Que fique registrado! Os governadores, a cada dia mais, vão descobrindo com quem estão lidando.
DINHEIRO DE QUEM?
Há uma outra falácia essencial nessa agressão. Fica parecendo que o dinheiro pertence a Bolsonaro e a seus ministros. E que se pratica uma grande generosidade ao transferi-lo para os Estados -- que, a rigor, é de lá que saíram. Tudo o que se produz, convenham -- e, pois, tudo o que se tributa --, sai dos municípios e dos Estados.
Eu poderia ser aqui ligeiro e dizer que, ao governo federal, fica a tarefa de comprar leite condensado e alfafa. Mas seria rebaixar o argumento à qualidade daquele exercitado por Faria. Ainda que as 26 toneladas de sal consumidas diariamente continuem a me encafifar. Mesmo fazendo refeição para a tropa. Estaria o produto sendo usado também para alimentar o gado ideológico?
A VERDADE
O dinheiro não pertence a Bolsonaro e à sua trupe. Ademais, as reparações e atendimentos que estão em curso foram desenhados pelo Congresso. Como esquecer as três parcelas de R$ 200 de Paulo Guedes e a proposta de mandar as pessoas para casa com contrato de trabalho suspenso e sem vencimentos?
Todos esses que agora se esforçam para tirar o corpo fora e responsabilizar os governadores teriam sido pendurados em praça pública pelos pés.
É lamentável que um jovem ministro, que deveria servir para aproximar o Executivo federal dos governadores e para aplainar as arestas de uma gestão estupidamente ideologizada, que parece ter obsessão pela morte, faça justamente o contrário.
EFICÁCIA
Faria é ministro das Comunicações. É também um dos herdeiros -- casado com uma das herdeiras ao menos -- de uma rede de televisão. Até em benefício de seu chefe, deveria saber que um ataque grotesco como esse pode servir para satisfazer lambedores de sal. Mas estes já estão convertidos.
De resto, o que resiste de, vamos dizer, espírito manso no país se deve à Coronavac, a vacina do Butantan, que foi escandalosamente sabotada pelo governo Bolsonaro.
É lamentável, sob qualquer aspecto, constatar tamanha vileza.
Ao entrar desse modo destrambelhado no debate, Faria se torna corresponsável pela política de Saúde em curso. Março pode chegar ao fim, ministro, roçando nos 300 mil mortos.
Seja corajoso e jogue de peito aberto: requisite rede nacional de rádio e televisão, culpe os governadores e cobre que a vida volte à normalidade.
Entre para a história para valer.
Ah, sim: só não se esqueça de que os hospitais privados, onde se internariam os seus comensais, também estão lotados. E o aeroporto não é alternativa para ficar longe do vírus ou para se distanciar da montanha formidável de cadáveres.
Muitos certamente morreram obedecendo às orientações do governo a que Vossa Excelência agora serve com truculência.