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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Compartilhamento da Spoofing com o STJ e temores da Lava Jato. Com motivos?

Ricardo Lewandowski (esq.), que compartilhou arquivos da Spoofing com o STJ, a pedido de Humberto Martins (dir.), presidente desse tribunal - Rosinei Coutinho/SCO-STF José Cruz/Agência Brasil
Ricardo Lewandowski (esq.), que compartilhou arquivos da Spoofing com o STJ, a pedido de Humberto Martins (dir.), presidente desse tribunal Imagem: Rosinei Coutinho/SCO-STF José Cruz/Agência Brasil

Colunista do UOL

05/03/2021 06h09

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Há ranger de dentes entre procuradores da finada Lava Jato — este cadáver moral durante muito tempo adiado, mas que ainda procria — porque Ricardo Lewandowski, do Supremo, atendeu a pedido de Humberto Martins, presidente do STJ, e compartilhou com o tribunal parte do arquivo da Operação Spoofing que diz respeito àquele tribunal.

Como já é público, em diálogos no aplicativo Telegram, capturados por hackers, integrantes da então Força Tarefa de Curitiba, chefiada por Deltan Dallagnol, conversavam de forma desabrida sobre a investigação, ao arrepio da lei, de ministros daquele tribunal.

Se elas aconteceram ou não, isso é o que tem de ser apurado. Há, por exemplo, uma conversa bastante eloquente em que se fala de vazar conteúdo de uma delação que comprometeria o ministro Ribeiro Dantas, então relator do petrolão naquele tribunal. O vazamento aconteceu. Dantas foi alvo de um inquérito aberto pela Polícia Federal, autorizado por Teori Zavascki.

Nada havia contra o ministro, e a investigação foi arquivada a pedido da própria PGR, mas isso custou a Dantas o posto de relator, conforme queriam os bravos da Lava Jato.

Em outra conversa, Deltan Dallagnol diz a colegas: "A RF [Receita Federal] pode, com base na lista, fazer uma análise patrimonial, que tal? Basta estar em EPROC [processo judicial eletrônico] público. Combinamos com a RF". Ele se referia a uma ampla investigação de integrantes do STJ.

"ATINGIR O MAIS NOVO"
Em outro diálogo, no dia seguinte à condução coercitiva de Lula, Carolina Rezende, um dos braços de Rodrigo Janot na PGR e membro da Lava Jato, incitou seus pares no Telegram:
"Precisamos definir melhor o escopo para nós dos acordos que estão em negociação. Depois de ontem, precisamos atingir Lula na cabeça (prioridade número 1), pra nós da PGR, acho q o segundo alvo mais relevante seria o Renan"
E ainda:
"Se tentarmos atingir ministros do STF, por exemplo, eles se juntarão contra a Lava Jato, não tenho dúvidas. Tá de bom tamanho, na minha visão, atingirmos nesse momento o ministro mais novo do STJ".

O ministro mais novo do STJ era justamente Navarro. Que foi atingido.

SOLICITAÇÃO
Com base nesses dados, Martins solicitou a Lewandowski dados "[...] referentes a menções relacionadas a ministros do Superior Tribunal de Justiça por autoridades com prerrogativa de foro nesta Corte para instrução da presente investigação instaurada por força do art. 58 do RISTJ."

O Artigo 58 do Regimento Interno do STJ, análogo ao 43 do STF, permite a abertura de inquérito de ofício para apurar "infração à lei penal na sede ou dependências do Tribunal". Em tempos de Internet, a "sede ou dependência" do tribunal é o país, gostem ou não.

HABEAS CORPUS
Diogo Castor de Mattos, um dos procuradores que aparecem nos diálogos, ingressou com um Habeas Corpus no Supremo, apresentado à ministra Rosa Weber, para trancar o inquérito aberto pelo STJ alegando que o foro para investigar procuradores de primeira instância são os Tribunais Regionais Federais.

Para começo de conversa, nem legitimidade ele tem para apresentar a petição. O STJ, de acordo com o que lhe garante o Artigo 58 do Regimento Interno, age em defesa da Corte ao determinar a investigação, uma vez que sobram indícios de que houve ações ilegais. Quem disse, a não ser o próprio, que Castor é um investigado? A sua petição — além da óbvia tentativa de tirar Lewandowski do caso — parte de qual premissa?

O ministro Humberto Martins determinou que se apure se a Corte foi vítima de operações ilegais, o que pode ou não chegar aos procuradores. Sim, é verdade: o que veio à luz até agora sugere que eles podem ter cometido crimes, mas não são, em princípio, os investigados.

O tribunal tem de apurar se seus integrantes foram alvos de ações criminosas. E ponto.

COMPARTILHAMENTO COM TCU
Lewandowski também compartilhou arquivos da Spoofing com o Tribunal de Contas da União, atendendo a solicitação daquele tribunal, conforme requerimento apresentado por Lucas Rocha Furtado, subprocurador-geral do MP junto à Corte.

Há dois processos na Casa, sob a relatoria do ministro Bruno Dantas, que apuram se há conflito de interesses no fato de Sergio Moro, juiz que cuidou do caso Odebrecht, ser agora sócio da empresa Álvarez & Marsal, que cuida justamente da recuperação judicial da... Odebrecht.

CONCLUO
A Lava Jato, como revelam os arquivos recebidos pelo site The Intercept Brasil e os apreendidos pela Operação Spoofing, não se caracterizava pela ortodoxia legal, não é mesmo?

A simples possibilidade de que seus procedimentos possam ser submetidos ao crivo da lei desperta na turma a retórica legalista a que nunca apelaram quando tinham todo o poder. Nem é o caso: a apuração aberta pelo STJ está amparada em seu Regimento Interno, que tem força de lei. Procedimento análogo no STF já foi considerado constitucional por 10 votos a 1 pelo próprio tribunal.

Sim, é verdade que tanto STF como STJ não deveriam se ver forçados a recorrer a inquéritos abertos de ofício quando membros das respectivas cortes são alvos de ilegalidades. O primeiro a se apresentar para a tarefa deveria ser o Ministério Público Federal — no caso, a PGR.

Se, no entanto, isso não acontece, é certo que as evidências de crimes não podem ficar sem apuração, que se dá segundo as regras do jogo.

Ilegal é investigar ministros de tribunais superiores sem a autorização do Supremo.

O STJ tem de saber se isso aconteceu — e há indícios muito eloquentes de que sim. Se membros da Lava Jato não cometeram esse crime, não há motivos para temor. Se há, sugiro negociar uma delação premiada.