Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Bolsonaro ataca o STF e a CPI. Não sabe o que fala, mas sabe por que fala
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O presidente Jair Bolsonaro é um caso raro, quem sabe único. Ele quase nunca sabe o que diz. Mas costuma saber por que o diz. Parece complicado, mas é assim. E espero que se esclareça ao longo do texto.
Ele, claro!, ficou bravo com a decisão do ministro Roberto Barroso, do Supremo, que determinou que se instale a CPI da Covid. Como não sabe o que diz, afirmou que o tribunal interfere nos outros Poderes. Duvido mesmo que conheça a Constituição. Era deputado e certamente aplaudiu quando o tribunal determinou, em 2007, a instalação da CPI do apagão aéreo.
Aliás, ele tem em palácio alguém que conhece a história direitinho. Um dos que recorreram ao tribunal foi o então líder do PFL na Câmara, Onyx Lorenzoni, que é hoje secretário-geral da Presidência. E olhem que, naquele caso, a maioria do plenário havia votado para derrubar a comissão, numa patranha meio vergonhosa, é verdade.
Bolsonaro certamente achava muito justo que se fizesse uma investigação. Afinal, pouco antes havia caído um Boeing, matando 154 pessoas. Ele só não se comove com 350 mil mortos.
Aí o presidente decidiu pescar em águas turvas:
"Agora, no Senado, tem pedido de impeachment de ministro do Supremo. Eu não estou entrando nesta briga, mas tem pedido. Será que a decisão não tem que ser a mesma também, para o Senado botar em pauta o pedido de impeachment de ministro do Supremo?"
Claro que não está entrando... Está pedindo que suas milícias digitais entrem por ele. Há até garotos de programas que se dedicam a criar abaixo-assinados virtuais para depor membros da Corte.
Aí baixou no presidente o falso espírito de Madre Teresa:
"Não está na hora de, em vez de ficar procurando responsáveis, unir Supremo, Legislativo, Executivo para a busca de soluções? O que que vai levar a abertura da possível CPI? As provas que estamos no caminho certo, que fizemos tudo o possível estão aí".
Nem parecia aquele que, na noite anterior, havia tratado aos palavrões um adversário político — no caso, o governador João Doria, cuja iniciativa responde por 80% das vacinas aplicadas no país.
O presidente que não sabe o que fala, mas sabe por que fala, foi adiante:
"É uma medida que, não tenho a menor dúvida, é para atingir o governo federal".
Depende do que ele quer dizer por "atingir". Se o significado for "investigar, apurar eventuais desvios, erros e crimes", está coberto de razão. CPIs são instrumentos da minoria e servem justamente a esse propósito.
Faça o seguinte, senhor presidente, chame Onyx Lorenzoni e pergunte por que ele recorreu ao Supremo em 2007 para que se fizesse a CPI do apagão aéreo. Apelando a seus termos, certamente era para "atingir" o governo Lula, não? E olhe que o fato gerador, insisto, foi a queda de um Boeing que matou 154 pessoas. Sem dúvida, uma tragédia. O senhor mesmo fez declarações fortes à época. Por que lhe parece tão razoável a morte de 350 mil?
Referindo-se, suponho, a Barroso, afirmou:
"Agora, queria que ele fizesse a mesma coisa, já que fez para nós, eu não queria entrar numa briga com ninguém do Supremo, uma liminar para o Senado abrir o processo de impeachment de ministro do Supremo Tribunal Federal também. Afinal de contas, aí mostra que ele é isento e tira meu discurso de agora, [...] que seria uma perseguição ao Poder Executivo".
Como se vê, não sabe o que fala, mas sabe por que fala. Lembrem-se que, no universo paralelo do bolsonarismo, já se chegou até a cogitar uma ampliação do número de ministros do Supremo para transformar o tribunal numa espécie de bancada governista. A propósito: impeachment de ministros do Supremo por quê? Ele tem de dizer a razão.
Quanto ao desafio de pedir que provem que ele está errado fazendo o que é do seu agrado, bem, a sofisticação do truque retórico fala por si mesma.
Deu ainda a seguinte declaração à CNN:
"Temos decisões acontecendo, e vocês sabem qual a minha opinião, OK, e vamos tocar a vida aí. O Brasil está sofrendo demais, e o que nós menos precisamos é de conflitos. Da minha parte, você sabe a minha posição. Respeito completamente a nossa Constituição. Não tem um pingo fora das quatro linhas da mesa".
Como naquela música, com adaptação, "não fazes favor nenhum em gostar da Carta". Até porque não é uma escolha. Ademais, a decisão de Barroso está dentro das, aderindo a metáfora, "quatro linhas". Presidente, entre no Google e coloque lá "Parágrafo 3º do Artigo 58 da Constituição". E o sistema de busca vai lhe devolver a seguinte resposta:
"As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores."
É o que basta para uma CPI. E, sim, será sempre um instrumento da minoria oposicionista para investigar a maioria governista. Só faltava ser o contrário, né? Aí seria coisa de ditadura.
A propósito: quando o plenário da Câmara revogou a instalação da CPI do apagão aéreo, em 2007, Bolsonaro concedeu uma entrevista à TV Câmara. Os subscritores do requerimento haviam recorrido ao Supremo. O então deputado afirmou que não esperava um resultado positivo porque, afinal, o tribunal tinha uma maioria de ministros indicados pelo PT. Defendeu a comissão e acusou o governo Lula de estar com medo de que se descobrissem irregularidades.
Pois é... O Supremo, por unanimidade, mandou instalar a CPI.
Pergunta: o senhor está com medo, presidente?