Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
1970: Saldanha cai por recusar jogador imposto por ditador; Bolsonaro piora
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A pressão de Jair Bolsonaro para demitir Tite e nomear Renato Gaúcho como técnico da Seleção nos devolve à ditadura militar. E num padrão, nesse particular, até rebaixado. O ditador Médici impôs à então CBD a demissão do técnico João Saldanha, aquele que realmente formou a Seleção de 1970, a do Tri.
Qual era o busílis? Médici queria fazer um agrado a Minas, por razões políticas, e exigia a convocação de Dadá Maravilha, que jogava, então, no Atlético Mineiro. Saldanha não aceitou. Foi demitido e substituído por Zagallo.
Vejam que coisa! Saldanha, de fato, era um esquerdista, próximo do Partido Comunista Brasileiro, e nem isso o derrubou da Seleção. Tivesse aceitado o nome de Dadá, teria permanecido à frente da equipe que havia montado e treinado. Hoje, numa democracia (ainda ao menos), a Família que nos governa se acha no direito de fazer uma patrulha ideológica que nem a ditadura fez — não, ao menos, na Seleção. Os porões estavam matando.
Reproduzo as palavras de Saldanha sobre o episódio em entrevista concedida ao jornalista Geneton Moraes Neto em 1983
GMN : Ainda hoje correm histórias de que o afastamento de João Saldanha do cargo de técnico da seleção brasileira de futebol se deveu a motivos políticos. De uma vez por todas, para passar a limpo esse caso: é verdade?
João Saldanha: De uma vez por todas para você! (em tom irritado). Afirmei e reafirmei e outras fontes metidas no meio também. Claro: na época fui convocado para a seleção brasileira no governo Costa e Silva. E Costa e Silva, estranhamente, morreu no meio do caminho. O governo mudou. Houve uma série de modificações na cúpula. E entrou o governo Médici - que, como precisava de uma frente bem ampla, resolveu usar a seleção, como vários governos usam até hoje. Inclusive o governo Figueiredo usa a seleção. Por exemplo: eu estou chegando da Europa, fui acompanhar jogos de uma seleção brasileira que não representava coisíssima nenhuma, por motivo algum. Nem a Europa dava bola. A não ser na cidade onde a gente estava, a outra cidade ao lado não sabia que a seleção brasileira estava jogando. Isso nunca aconteceu! É jogada política. Naquela época, também.
O presidente ? Aliás, não chamo de presidente da República porque costumo chamar de presidentes os que foram eleitos; não os usurpadores do poder. Então, o usurpador do poder naquele momento era o senhor Médici - que desejava popularidade e quis fazer popularidade através da seleção. Não era um bom caminho. Eu não estava de acordo. Nós éramos apenas um time de futebol. Mais nada!
Quiseram impor a convocação de Dario - por sinal, um bom jogador.
Era de alto nível, mas não de tão alto nível como eram os jogadores de que a seleção precisava, como Pelé, um Tostão, um Dirceu Lopes, um Gérson, um Clodoaldo, um Rivelino, um Jairzinho. Embora Dario fosse um bom jogador do ranking brasileiro, não existia lugar para ele nessa turma.
Mas, como Dario era do Atlético Mineiro e o governo naquele tempo precisava uma barretada pra Minas Gerais, quiseram botar Dario à força. Recusei. Puseram para fora Toninho - do Santos - um grande goleador com quase novecentos gols, por causa de uma sinusite. Antônio do Passo e João Havelange diziam: "Pelo amor de Deus, convoque Dario, nem que seja pra ele nem mudar de roupa. Convoque pelo nome, porque vamos ficar bem com os homens e precisamos de dinheiro!".
Não convoquei. Convoquei até homens de meio-de-campo. Neste momento, entrei num atrito desvantajoso".
GMN: A pressão do general Médici para ver Dario na seleção brasileira era indireta, através de declarações, ou ele chegou a pressionar diretamente?
Saldanha: Pressão direta se fazia através dos homens da CBD. Era indireta em relação a mim. A pressão direta era lá com os homens. Diziam: "Ou bota Dario ou sai fora". Chegaram e me disseram: "João, não podemos aguentar mais! Faça isto!".
João Havelange dizia: "Pelo amor de Deus, convoque Dario! Convoque pelo nome!" Se convoco Dario, tudo bem. Eu ia me avacalhar! Mas não tenho hábito de me avacalhar. Não me avacalhei. A seleção brasileira, felizmente, ganhou a Copa do Mundo no México, em 70. Se não, eu não poderia nem voltar para o Brasil.
Quando eu ia sair do Brasil para o México, fui posto para fora do avião no Aeroporto do Galeão, embora tivesse passagem comprada, passaporte, tudo certinho. Tive de ir para o México. para ver a Copa, pelo caminho que Ronald Biggs, aquele ladrão de trem, fez. Fui parar em Port of Spain, via Pará-Paramaribo. Lá, vendem umas passagens estranhas de ida-e-volta, assim numa espécie de falso turismo, porque nem precisa de passaporte nem nada. Avião de vagabundo. Fui parar lá. De Paramaribo, não voltei. Comprei uma passagem com meu passaporte, tudo legal e fui para Port of Spain. Lá, peguei a Pan-American para a Guatemala e, só então, fui para o México. Cheguei três dias depois de quando tinha saído do Brasil.
ENCERRO
Eis aí o vício da truculência. Mas que se note: a ditadura quis impor apenas um jogador ao técnico. Bolsonaro quer impor o próprio técnico à Seleção e um torneio aos jogadores e ao país que é um atentado à saúde pública.
Corresponde a tripudiar sobre quase 500 mil cadáveres. Aqueles que, segundo o presidente, morreram sem nem sentir...
Ah, sim: Dadá Maravilha foi convocado. Ficou no banco.