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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Resista, Cármen! Só apuração prévia de live bandida, como quer Aras, é nada

Ministra Cármen Lúcia, relatora de petição que pede abertura de inquéritos para apurar os crimes da live de Bolsonaro que foi ao no dia 29 de julho. Resposta de Aras é inaceitável - Foto: Valor
Ministra Cármen Lúcia, relatora de petição que pede abertura de inquéritos para apurar os crimes da live de Bolsonaro que foi ao no dia 29 de julho. Resposta de Aras é inaceitável Imagem: Foto: Valor

Colunista do UOL

17/08/2021 05h21

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O procurador-geral da República está produzindo, como se diria em juridiquês, "farto material probatório" para os seus biógrafos. Estes terão muito com o que se divertir. Já a coisa a ser feita — a sua biografia — há de padecer bastante. Bem entendidos os documentos que saem da Procuradoria Geral da República, é possível ler em Aras mais do que alguém que parece alinhado com a cosmovisão do bolsonarismo. Em muitos aspectos, fica-se com a impressão de que se está diante de um militante da causa. Essa militância, consciente ou não, está gravada no que produz.

Deu-se ontem, com efeito, um caso fabuloso. E é possível que a imprensa não tenha emprestado à coisa a devida importância. Antes que volte ao ponto, é preciso elencar algumas informações objetivas e prévias.

OS DADOS OBJETIVOS DA QUESTÃO
Um grupo de deputados do PT -- Alencar Santana Braga, Henrique Fontana Júnior, Rogério Correia De Moura Baptista, Elvino José Bohn Gass, João Somariva Daniel, Pedro Francisco Uczai, Leonardo Cunha de Brito, Érika Jucá Kokay, Arlindo Chinaglia Júnior e Nilto Ignácio Tatto -- entrou no STF com uma notícia-crime contra o presidente Jair Bolsonaro em razão da sua live desastrosa de 29 de julho. A relatora é a ministra Cármen Lúcia.

Transcrevo abaixo as transgressões às normais legais que, entendem os deputados, o presidente praticou e sobre as quais pedem apuração, segundo a petição enviada à ministra, que a encaminhou ao procurador-geral. Prestem atenção:

a) Apuração de ato de improbidade administrativa por violação ao § 1º do art. 37 da Constituição Federal e ato de improbidade previsto no art. 10, inciso IV da Lei 8429/92, devendo o representado ressarcir aos cofres públicos o valor correspondente aos valores praticados pelo mercado e/ou pela TV BRASIL para o tipo e o tempo de transmissão realizada em sua rede nacional, sem prejuízo de multa e perda dos direitos políticos, além do cargo público;

b) Apuração de propaganda eleitoral antecipada nos termos do art. 36-B da Lei 9504/97, com aplicação de multa de até R$ 25.000,00;

c) Apuração de abuso de poder político e econômico em benefício do representado, nos termos do art. 22 da Lei Complementar 64/90;

d) Apuração dos crimes eleitorais previstos nos arts. 323 ou 326-A do Código Eleitoral, ante a possível prática de crime de divulgação de fake news eleitoral, dando causa à instauração de processo por parte da Corregedoria Geral do TSE para investigação acerca das infundadas fraudes no sistema eleitoral apontadas pelo representado.

Tudo entendido até aqui? Então sigamos.

Cármen enviou a notícia-crime para resposta do procurador-geral no dia 3 deste mês. Até esta segunda, passados 13 dias, não havia recebido da PGR resposta nenhuma. E ela houve por bem fazer uma nova cobrança. Afinal, no despacho enviado a Aras há quase duas semanas, escreveu:
"A despeito de se ter consolidado não ser deste Supremo Tribunal Federal o foro próprio para conhecimento e julgamento de ação de improbidade contra autoridade pública, há de se considerar que o grave relato apresentado pelos autores da presente Petição conjuga atos daquela natureza com outros que podem, em tese, configurar crime, mais especificamente, de natureza eleitoral, utilização ilegal de bens públicos, atentados contra a independência de poderes da República, o que, após a necessária análise, conduzirá à conclusão sobre a competência para o conhecimento e o processamento da presente Petição.
Necessária, pois, seja determinada a manifestação inicial do Procurador-Geral da República, que, com a responsabilidade vinculante e obrigatória que lhe é constitucionalmente definida, promoverá o exame inicial do quadro relatado a fim de se definirem os passos a serem trilhados para a resposta judicial devida no presente caso.
"

Como se observa, no que concerne à questão da improbidade, a ministra aponta a impropriedade do foro, mas há os demais possíveis crimes, que ela carimba como "grave relato". Pois bem. Nesta segunda, depois de nova cobrança da magistrada, Augusto Aras houve por bem se manifestar.

E O QUE FEZ ARAS?
É bom notar que os deputados pediram abertura de inquéritos para apurar os crimes apontados acima, reconhecidos até pelos gramados de Brasília. E o procurador-geral não hesitou: "manifesta-se pela negativa de seguimento à Petição". VALE DIZER: ELE SE OPÔS À ABERTURA DE INQUÉRITOS. Cármen não precisa concordar com ele e pode determinar ela mesma as investigações. A palavra do Ministério Público é terminativa quanto à instauração ou não de ação penal, não de inquérito.

Na resposta enviada à ministra, o procurador-geral informa que mandou abrir no dia 12 -- na quinta-feira passada -- uma investigação preliminar para saber se o presidente cometeu os delitos apontados pelos deputados. Escreve:
"Ao tomar conhecimento dos fatos que são objeto desta notícia-crime, foi determinada a instauração, em 12 de agosto de 2021, da Notícia de Fato 1.00.000.014572/2021-53 neste Ministério Público Federal, que, como dominus litis (art. 129, I, da Constituição Federal), ou seja, titular privativo da ação penal, apurará os fatos noticiados e discernirá, oportunamente, em torno de eventual(is) prática(s) de ilícito(s) penal(is) e de lastro probatório mínimo para oferecimento de denúncia, à luz do ordenamento jurídico e da jurisprudência desse e. Supremo Tribunal Federal, preservando-se o sistema constitucional acusatório."

CEMITÉRIO DE INVESTIGAÇÕES
A "investigação preliminar", a partir da tal "Notícia de Fato", é uma apuração de caráter interno, que ocorre no ambiente da própria PGR, e que costuma ser um cemitério de investigações. Escreve o procurador-geral:
"A depender da robustez dos elementos obtidos por meio dessas diligências, cabe ao órgão ministerial, então, discernir em torno de oferecimento de denúncia, de dedução de pedido de instauração de inquérito ou ainda de arquivamento, comunicando-se, oportunamente, ao respectivo Relator".

O próprio Aras, diga-se, lista uma penca de apurações preliminares que não deram em nada. Se há coisa que dispensa apuração prévia, convenham, é a live protagonizada pelo presidente no dia 29 de julho. Ele prometeu apresentar as provas de que houve fraude nas eleições de 2014 e de 2018. Não as apresentou. Limitou-se a exercitar teorias conspiratórias — em que tribunais superiores aparecem como protagonistas de crimes para eleger um determinado candidato — e a afirmar que o sistema não é seguro. Entender o procurador que inexistem motivos sólidos para, ao menos, a abertura de inquérito — com o concurso, pois, da Polícia Federal — é uma ofensa ao bom senso.

PROVOCAÇÕES ADICIONAIS
Noto que Aras, na resposta encaminhada à ministra, abespinha-se um tantinho ao lembrar que ela não havia estabelecido prazo para que ele se manifestasse, apontando que seria mesmo impróprio:
"Vossa Excelência, ao determinar o encaminhamento da notícia-crime à Procuradoria-Geral da República, sem assinar prazo judicial, até porque seria prazo impróprio, teceu as seguintes considerações preliminares (...)"

Não havia prazo, mas lá estava explicitada a gravidade do caso. De resto, se o procurador-geral mandou abrir a investigação preliminar no da 12, por que não deu imediatamente ciência à relatora?

O procurador-geral reivindica também a exclusividade do Ministério Público — ainda que o faça de maneira um tanto oblíqua — para arbitrar sobre a abertura ou não de um inquérito. Ele sabe que isso não existe. Nesse caso, a decisão é do magistrado, cabendo ao Ministério Público apenas opinar. Assim, reitere-se: se Cármen quiser, ela manda abrir a investigação, uma vez que o procurador-geral, parece, ainda está a pensar se o espetáculo grotesco do dia 29 de julho incorreu ou não, quando menos, em hipótese de crime.

É mesmo espetacular o que está em curso. E bastante constrangedor.

Esse é o presidente que, no sábado, enviou para sua rede de contatos uma mensagem — ainda que atribuída a terceiros — pregando a necessidade de um rompimento institucional, que se caracterizaria como um "contragolpe". E o alvo principal do ataque, uma vez mais, é o Supremo. Aras, no entanto, opõe-se à abertura de inquérito para apurar eventuais crimes da live... criminosa! Prefere a "apuração preliminar" e ainda se diz dono de uma bola que não é sua.

FIM DO MONOCRATISMO
De novo: abertura de inquérito não depende da vontade do procurador-geral. Ele opina. Tem a última palavra apenas no caso da abertura da ação penal. E esse que é o único poder realmente monocrático e irrecorrível da República tem de chegar ao fim. Faz parte das disfunções a corrigir na democracia brasileira.

Como se nota, esse monocratismo pode nos levar à beira de um golpe — ou, ao menos, de uma grande bagunça — sem que o procurador-geral dê um suspiro. Ou suspire com 13 dias de atraso.

Os biógrafos terão com o que se fartar. Não serão biógrafos de Aras propriamente, mas destes dias destrambelhados.