Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Uma chance à paz? Ou: Sanções espalham guerra mundo afora por outros meios
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Decidem-se hoje, na Turquia, quantos milhares vão morrer na Ucrânia e quantos milhões de famílias ainda vão se desfazer, uma vez que homens de 18 a 60 anos estão impedidos de deixar o país invadido pelos russos, obrigados que estão a resistir. Estima-se que mais de dois milhões de mulheres, crianças e idosos já fugiram da guerra. Trata-se de um desastre humanitário de grandes proporções.
Mas há mais: a continuidade do confronto vai acirrar as sanções contra a Rússia, além de manter as que já estão em curso, e isso vai impactar a economia do mundo inteiro. Os efeitos já estão chegando ao Brasil, por exemplo. A elevação do preço do petróleo deve pressionar a inflação, o que repercute nos juros. O mercado já prevê que o BC deve elevar a taxa em um ponto percentual na próxima reunião do Copom. Já se fala que 2022 chegará ao fim com estratosféricos 14%.
Na Turquia, os chanceleres Sergei Lavrov, da Rússia, e Dmytro Kuleba, da Ucrânia, fazem a primeira reunião realmente de governo para tentar pôr fim à guerra. As exigências de Putin, o invasor, já são públicas: reconhecimento da independência das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk e da soberania russa sobre a Crimeia e o compromisso de neutralidade da Ucrânia, abstendo-se de aderir a blocos militares — leia-se "Otan".
Os russos e o mundo já experimentam os efeitos das sanções impostas por Estados Unidos e Europa, às quais aderem, todos os dias, países e empresas que, em tese ao menos, poderiam continuar a negociar com a Rússia. Ocorre que ninguém quer ser um "ficha suja".
As medidas, reconheça-se, não salvam vidas, não preservam cidades, não tornam o ambiente mais propício à negociação. Mas se nem Dostoiévski e Tchaikovsky escapam da fúria retaliatória, não há mesmo muito a fazer a não ser torcer para que duas pessoas muito pouco confiáveis — Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky — acabem, por meio de seus ministros, chegando a um acordo.
Vejam o que aconteceu anteontem e ontem com o barril de petróleo. Joe Biden despertou do cochilo e decidiu que os Estados Unidos não comprariam mais petróleo russo. O preço disparou. A Ucrânia sinalizou que pode efetivamente abrir negociações, e a Rússia assegurou que não pretende derrubar o governo do vizinho nem ocupar o país. O preço não chegou a despencar, mas caiu bastante. Convenham: quando são os insanos a baixar a temperatura da crise (além do petróleo), é sinal de que vivemos dias confusos e perigosos.
SÃO CONFIÁVEIS?
Putin é confiável? Bem, ele invadiu um país ao arrepio das leis internacionais; chegou a fazer um discurso deixando claro que não o reconhecia como nação soberana; mobilizou milhares de soldados nas fronteiras do adversário, assegurando que não as atravessaria. O resto vocês já sabem.
Zelensky, por seu turno, está apaixonado demais pela personagem que criou para si mesmo — e é inegável que o mundo também se apaixonou por ele, o que é espantoso — e ora diz uma coisa, ora outra. Ao mesmo tempo em que afirma estar pronto para negociar com a Rússia e para avaliar a sua pauta, classifica o adversário de "país terrorista", reivindica abertamente a intervenção da Otan e pede à aliança que dê um jeito de amealhar caças soviéticos entre as ex-repúblicas socialistas que agora integram o bloco. Sua mulher espalha nas redes sociais fotos de crianças mortas, supostamente vitimadas pelas forças russas. Não! O bufão também não é confiável. Mas só podemos contar com eles, o que não deixa de ser apavorante.
Putin é, do ponto de vista político, uma figura repulsiva. Egresso da polícia política da antiga URSS, virou entre parceiro e operador de uma espécie de máfia que se apoderou dos escombros do Estado soviético, privatizando-o em benefício próprio. Curiosamente, o autocrata não tem fama de corrupto. Sua ambição parece ser mais o poder — que exerce com gosto e truculência — do que o dinheiro.
O mundo já o olhava com apreensão. Ao invadir o território ucraniano, encontrou uma combinação de resistências: das Forças Armadas, que vão se virando como podem; da parceria EUA-UE e da opinião pública mundial. Certamente está hoje no topo das pessoas mais odiadas da Terra. O mundo comprou a causa ucraniana e transformou Zelensky, o pateta incidental, em herói. Putin perde feio a guerra todos os dias nas redes sociais.
Ocorre que, ainda que com intervenções mais qualificadas, a imprensa profissional do mundo inteiro, inclusive a nossa, já não se distingue tanto daquilo que é ofertado pelas redes. Nem mesmo se dá conta dos paradoxos em que incide: se Zelensky, bravo com a Otan, diz que pode desistir de fazer parte do clube porque, afinal, não foi socorrido como pretendia, então é fato que a adesão à aliança militar está no centro das causalidades do conflito e que o presidente ucraniano tinha a ambição de integrar o grupo numa posição realmente hostil à Rússia, que usou tal pretensão como pretexto para a invasão. E nem assim a dita-cuja se legitima, é bom notar.
É claro que a invasão é inaceitável. Mas, antes que as partes realmente entrem em negociação, indago: que preço é razoável pagar para tentar fazer com que Putin faça o que não fará? E que coisa é essa? Recuar sem prêmio. Não vai acontecer.
A população russa, infelizmente, arcará por muito tempo com as consequências da decisão tresloucada de Putin, ainda que a guerra acabe amanhã. E os ucranianos? Será um trauma de décadas. Entendo que é um dever da imprensa democrática, que vigia o poder, cobrar que Estados Unidos e Europa atuem para impedir que as vítimas da guerra se espalhem mundo afora. E é precisamente esse o efeito das draconianas sanções adotadas.
Os meios para impedir a guerra não podem espalhar os efeitos da guerra. É elementar.