Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
BC não é o STF de Lula; isso é bobagem. E parem de fugir de Lara Resende!
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Sustentar que a crítica de Lula ao Banco Central é a versão petista dos ataques que Jair Bolsonaro, o fascistoide, fazia ao Supremo Tribunal Federal é delinquência intelectual — vale dizer: má-fé — ou ignorância mesmo. Em qualquer caso, manifestação virtuosa não é. Essa gente precisa de mais André Lara Resende e de menos especuladores de meia-tigela. Já volto a esse ponto. Antes, cuidemos da falsa simetria.
Bolsonaro passou a urdir, ainda que a seu modo, um golpe de estado já desde a campanha eleitoral de 2018. Ao afirmar que bastavam um soldado e um cabo para fechar o Supremo, sem nem precisar de um jipe, Eduardo vocalizava, naquele ano, o espírito daquela gente. E o ataque ao Supremo aconteceu. O primeiro ato golpista com apoio do presidente data de 26 de maio de 2019. O governo, então, ainda não havia sido derrotado em nenhuma questão importante nem no Congresso nem no STF. E a canalha na rua já pregava o fechamento de ambos, com a anuência do seu líder espiritual. Veio a pandemia, e o biltre radicalizou a retórica golpista porque não aceitava que o STF contivesse as suas teses homicidas que convidavam ao suicídio em massa. O passo seguinte foi atacar o sistema eleitoral.
Em muitos aspectos, o golpe aconteceu. Olhemos para a herança que Bolsonaro deixou na assistência social, na saúde, na educação, no meio ambiente. O genocídio do povo yanomami é um emblema dessa destruição. E por que aconteceu com eles? Porque eram os mais frágeis. Voltemos ao ponto.
QUE INDEPENDÊNCIA?
Criticar a política de juros do Banco Central ou mesmo a sua "independência" -- e se passou a empregar essa palavra num espetacular ato falho -- é coisa equiparável, de algum modo, ao esforço sistemático para golpear as instituições? Esse juízo é uma aberração vocalizada por aí por pessoas que perderam o senso de proporção. O STF encarna um Poder da República. O BC é um órgão de Estado porquanto órgãos de Estado são todos os entes públicos, mas ele é um instrumento da governança que integra o Executivo.
Não por acaso, vejam que curioso, a imprensa — que tem como fontes quase que exclusivamente gestores de corretoras e fundos — passou a empregar a palavra "independência" para se referir à condição do BC depois da aprovação da Lei Complementar 179. E essa palavra inexiste no texto, a não ser, conforme o padrão, quando se coloca a data na assinatura do presidente, ao promulgar uma lei: "Ano X da Independência" — no caso, a do Brasil, não a do BC.
A LC 179, ao especificar a matéria de que trata, fala, obviamente, em "autonomia". Independentes são os Poderes da República. E o BC, à diferença do que muitos gostariam, não é um Quarto Poder. Ora, se o presidente da República está inconformado com a taxa de juros e se esta pode inviabilizar não só seu governo, mas o país, o que deve fazer? Silenciar? Ou, então, será acusado de mimetizar um golpista, que, na prática, incentivou a sua cachorrada a atacar as respectivas sedes dos Três Poderes? Tenham compostura!
Já lembrei essa questão aqui, no programa "O É da Coisa", na BandNews FM, e em toda parte, e o economista André Lara Resende tratou da questão na excelente entrevista que concedeu ao programa "Canal Livre" (link no pé do texto) nesse domingo: o papel do Banco Central não é exclusivamente "assegurar a estabilidade de preços" -- leia-se: regular taxa de juros para controlar a inflação (e mesmo aqui cabem ressalvas...). Também é sua atribuição avaliar a atividade econômica e buscar o pleno emprego. Transcrevo o Artigo 1º da Lei e seu Parágrafo Único:
"Art. 1º - O Banco Central do Brasil tem por objetivo fundamental assegurar a estabilidade de preços.
Parágrafo único. Sem prejuízo de seu objetivo fundamental, o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego."
O Banco Central, ademais, é AUTÔNOMO, NÃO INDEPENDENTE para implementar as metas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, formado hoje pelo próprio presidente do BC e pelos ministros da Fazenda e do Planejamento. Uma outra Lei Complementar, por exemplo, pode, se quiser, aumentar o número de participantes do CMN. Se os respectivos ministros do Trabalho e do Desenvolvimento Social ali tivessem assento, não seria um despropósito. Ao contrário: seria uma boa resposta, adequada às funções do CMN, que dará a direção ao BC.
Define o Artigo 6º da Lei 179:
"Art. 6º - O Banco Central do Brasil é autarquia de natureza especial caracterizada pela ausência de vinculação a Ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira, pela investidura a termo de seus dirigentes e pela estabilidade durante seus mandatos, bem como pelas demais disposições constantes desta Lei Complementar ou de leis específicas destinadas à sua implementação."
Isso não significa que o BC se transformou num ente realmente independente, que se dá ao luxo de passar pitos, ainda que de maneira pretensamente suave, no poder político. Mas parece que Roberto Campos Neto, atual presidente, entende que não só se está diante do Quarto Poder, como seria este a reger os outros três. Disse em seminário recente:
"A principal razão, no caso da autonomia do BC, é desconectar o ciclo de política monetária do ciclo político, porque eles têm diferentes lentes e diferentes interesses. Quanto mais independente você é, mais efetivo você é, e menos o país vai pagar em termos de custo-benefício da política monetária".
Já escrevi a respeito na coluna da Folha. Isso é uma grossa tolice. Voltemos ao Artigo 1º, com Parágrafo Único, da LC 179, que conferiu tal autonomia. Por acaso o sr. Campos acha que pode "assegurar a estabilidade de preços", "suavizar as flutuações do nível de atividade" e "fomentar o pleno emprego" DESCONECTADO da política? Bem, então temos um Luís XIV do BC...
Prestem atenção a estas palavras:
"Um Banco Central autônomo parte do princípio de que a política monetária possa ser algo puramente técnico e [que] não esteja submetida a circunstâncias, o que não é verdade. A teoria monetária, como toda teoria econômica, é uma combinação de técnica -- de noções sobre o funcionamento da economia. E, como a economia é uma ciência social -- portanto, uma ciência política, não uma ciência exata --, ela tem necessariamente de estar ligada a circunstâncias políticas".
A fala é de Lara Resende no Canal Livre.
CONVERSA DESPROPOSITADA
É um despropósito a simples consideração de que um Banco Central, qualquer um, esteja, como é mesmo Campos Neto?, DESCONECTADO do mundo político, que é pressionado, então, pela inflação, pelo desemprego, pelo nível de atividade -- pelo mundo real, onde estão as pessoas.
Lula não só pode reclamar da taxa escorchante de juros como deve. Essa história de que ele contribui para aumentar a inflação com sua crítica é puro terrorismo. O Brasil tem a maior taxa de juros reais do mundo. Encerrou dezembro em 8,16%. O México, em segundo lugar, está em torno de 5,5%.
De novo Lara Resende:
"A elevação da taxa de juros, está no site no Tesouro Nacional, nos últimos dois anos, custou quase 2% do PIB a mais em serviços de juros, em 2021, e quase 4% em 2022. Lembre-se: a PEC da Transição é menos de 2% do PIB. Ou seja: exigiu uma emenda constitucional para aumentar os gastos públicos em menos de 2% do PIB. E algumas canetadas do Banco Central aumentam, em dois anos, em 6% do PI com custo da dívida. Faz sentido? Lembre-se: quando você aumenta os juros, você aumenta o custo de financiamento da dívida e aumenta o déficit. Não aumenta o déficit primário, mas aumenta o déficit nominal, aumenta a dívida. Então se diz: 'Eu estou aumentando a taxa de juros por causa do risco fiscal'. Só que, ao aumentar a taxa de juros, aumenta o desequilíbrio fiscal. Então aumenta o risco fiscal. Aí teria de aumentar mais a taxa de juros? Alguma coisa está profundamente errada".
E está.
Há muitos outros aspectos da entrevista de Lara Resende que precisam ser debatidos. À diferença do que se pode imaginar, o balanço dos bancos, com juros estratosféricos, não estão animadores, por exemplo. A razão é simples: aumenta a inadimplência e o risco de calote mesmo, o que leva à contração do crédito, o que ajuda a empurrar a economia para o buraco.
VOLTANDO AO COMEÇO
Perceberam? Trata-se de um debate sobre preços da economia. A manutenção da taxa de juros nominais em 13,75% é injustificável. A conversa do "risco fiscal" fica a cada dia mais insana. Infelizmente, a imprensa, especialmente a voltada para a economia, tem pouco interesse na pluralidade e prefere ouvir variações do discurso único.
É ridículo que se tente ignorar o que gente como Lara Resende tem a dizer. Não custa lembrar: ele tem o Plano Real no currículo. A gritaria estúpida contra as críticas feitas por Lula é uma tentativa de fazer do BC uma espécie de Quarto Poder, sim, que pairasse acima das dissensões humanas. Se Lula, que tem o diploma que lhe foi conferido pelo povo brasileiro, não fala, quem vai falar? Os que lucram com os erros do Banco Central? É assim tão difícil constatar que a taxa de 13,75%, com juros reais de mais de 8%, não está, por exemplo, devolvendo a inflação à meta? Serve, isto sim, para impedir o crescimento.
Atenção para isto:
"Se taxa de juros alta combatesse a inflação, nós não precisaríamos ter feito o Plano Real. Quando eu fui presidente do Banco Central, eu assumi com a taxa de juros reais mais alta da história. E não tinha nem sinal de que a inflação iria ceder. Por que precisaria do Plano Real? Era só subir a taxa de juros".
Sim. É Lara Resende de novo. A quase totalidade da imprensa prefere tratar Lula como um destrambelhado, que resolveu pegar no pé do Banco Central. E os mais destemidos na estupidez comparam a crítica a uma política monetária aos ataques de Bolsonaro ao Supremo. É um insulto aos fatos e à inteligência.