Reinaldo Azevedo

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Opinião

Foguete no hospital e as ações que expropriam os homens da condição humana

É quase impossível que uma investigação independente não aponte o que, de fato, aconteceu no hospital al-Ahli Arab, matando pelo menos 500 pessoas na cidade Gaza. Um foguete da Jihad Islâmica? De Israel? Artefatos de ataque e de defesa se cruzando no céu e fazendo centenas de vítimas em terra? Qualquer que seja a resposta e qualquer que seja o culpado, tendo a acreditar que se trata mesmo de um acidente. Sabendo que especialistas podem chegar à verdade, não vejo o que um lado e outro ganhariam com uma ação deliberada. Pensemos um pouco.

A hipótese de que a Jihad Islâmica atacou seu próprio povo com o objetivo de culpar o inimigo — insisto em que é possível saber a autoria — para tentar parar a guerra não faz sentido. Nem os reféns impuseram algum limite ao governo israelense. Quem, reagindo a um ataque terrorista brutal, impõe o deslocamento de mais de um milhão de civis e promove bombardeios de modo indiscriminado já precificou a eventual eliminação dos cativos e parece convencido de que é possível engajar a sociedade na tarefa de "salvar o país" e "eliminar o inimigo", ainda que isso custe a vida de alguns mártires.

Esse governo Netanyahu não é mais aquele que, em 2011, soltou 1.027 prisioneiros palestinos em troca do soldado Gilad Shalit — muitos deles estavam condenados à prisão perpétua. Shalit havia sido capturado pelo Hamas em junho de 2006, durante o governo de Ehud Olmert.

"E por que não seria um ataque deliberado de Israel?" Que sentido isso faria? O desespero do atual primeiro-ministro para minimizar a falha grotesca de segurança e para dar uma resposta arrasadora não parece compatível com o ataque a um hospital. Não é tolo e sabe que isso inflamaria, como inflamou, o mundo muçulmano. A primeira consequência foi o cancelamento do encontro que haveria nesta quarta, em Amã, entre o rei jordaniano Abdullah 2º e os presidentes Joe Biden (Estados Unidos), Abdel Fattah al-Sisi (Egito) e Mahmoud Abbas (Autoridade Nacional Palestina).

A CONDIÇÃO HUMANA
As ações dos terroristas do Hamas foram de tal sorte insanas, executadas com tais requintes de crueldade, que boa parte do mundo se quedou silente, indiferente à tragédia em curso em Gaza. E olhem que não farei aqui o raciocínio, com alguma frequência tosco, sobre a tal "proporcionalidade".

O que seria "proporcional"? Israel entrar em Gaza e fuzilar 1.400 civis? Sequestrar palestinos para negociar? Pedir que um jovem se apoie numa cerca, metralhá-lo e queimar seu corpo em seguida? Um crime contra a humanidade, como foi o do Hamas, não é aquele que ameaça com a extinção a espécie, mas aquele que expropria das vítimas "a condição humana", lembrando o título de um livro de Hannah Arendt, pensadora judia cuja imagem me acompanha todos os dias nas lives de "O É da Coisa".

Arendt, aliás, lembra nessa obra que os "homens são as únicas coisas mortais" que há no mundo. Os outros animais existem na imortalidade do ciclo da procriação. Como temos histórias individuais que se assentam na vida biológica e somos dotados da consciência dessa finitude, movemo-nos em linha reta, do nascimento à morte, num mundo em que tudo é cíclico. Por nossas obras, podemos buscar a eternidade, ainda que condenados à mortalidade.

Quem pode dispor, assim, com ligeireza brutal, da mais humana de todas as condições, que é a individualidade? Jamais se diga que alguém "foi morto como um animal". Só nós, os humanos, nos sabemos morrendo. E há que se dizer com todas as letras: o cerco de Israel aos civis de Gaza é humanamente inaceitável. Um crime contra a humanidade é aquele em que se busca matar o humano no homem; expropriá-lo dessa... condição. Nesse caso, pouco importa saber se o agente é uma milícia terrorista ou um Estado organizado. São crimes distintos, sim, mas se igualam na desumanização das vítimas.

E O ATAQUE AOS SÃOS?
Dado o contexto, não deixa de ser curioso -- ainda que não se saiba, por ora, a autoria -- que o ataque a um hospital, onde se encontravam centenas de feridos, tenha gerado indignação e perplexidade. Pelo menos 500 pessoas morreram. Mas esperem.

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Por que a muitos parecia suportável e inevitável — uma espécie de preço a pagar ou dano colateral razoável — que já se contassem três mil civis mortos, 700 crianças, em bombardeios indiscriminados? Netanyahu convidou o mundo a achar decente o deslocamento forçado de 1,1 milhão de pessoas, assegurando que, em verdade, se trata de uma ação humanitária, dado que estaria advertindo que a área seria atacada, possibilitando a fuga. Fuga para onde? Os ataques no Sul da Faixa de Gaza, para onde migrou essa massa imensa, não cessaram. Hoje, metade do território minúsculo abriga o dobro da população. Sem água, sem luz, sem comida, sem remédio, sem saneamento, sem leitos hospitalares.

Por alguma razão, o ataque a doentes pareceu a muitos mais imoral do que o ataque aos sãos. Talvez exista aí a suposição de que os que estavam no hospital al-Ahli Arab não tinham como correr. Mas pergunto: e os outros? Tinham? Têm.

AUTORIA
É claro que a autoria do ato bárbaro contra o hospital faz diferença, até porque tirou a muitos de uma espécie de letargia, de normalização da barbárie punitiva e coletiva. Se Israel for o responsável, esse crime lhe vai pesar sobre os ombros, e crescerá enormemente, mundo afora, a cobrança sobre os métodos que vem empregando até agora.

Se ficar evidenciado que a Jihad Islâmica disparou o foguete e de que foi ele a matar os 500, será muito difícil convencer a opinião pública mundial de que não se tratou de uma tramoia para responsabilizar o inimigo. Israel poderia, então, usar o caso para evidenciar que faz a coisa certa, afirmando, mais uma vez, que está apenas no começo.

Quem imagina um fim para essa história?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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