Argentina: Milei mixa; Massa em 1º; direita tradicional escolherá o abismo?
A Argentina ainda respira. Não que sua economia vá se levantar, serelepe e fagueira, caso o peronista Sergio Massa (União Pela Pátria) venha a vencer o segundo turno no dia 19 de novembro. Mas, por ora ao menos, a maioria relativa dos que votaram decidiu desviar o olhar do abismo, ainda que o abismo esteja doido para encará-la. Não aconteceu o pior. O dito "libertário" Javier Milei (A Liberdade Avança) não venceu a disputa no primeiro turno. Mais (ou bem menos) do que isso: com 98,5% dos votos apurados, tem 29,98%, ligeiramente inferior ao índice que obteve nas prévias (30,04%), em 13 de agosto. Massa, que havia chegado em terceiro nas PASO (Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), saltou de 27,27% para 36,68%, ganhando 9,41 pontos em dois meses. A conservadora Patrícia Bullrich, da coalizão "Juntos pela Mudança", conhecida por "JxC", derreteu: dos 28,27% de há dois meses, somou agora apenas 23,83%, uma queda de 4,44. Votaram 27.099.620 eleitores, 78% dos 34,74 milhões que estão inscritos.
Que coisa! Também no país vizinho a extrema-direita porra-louca toma eleitores da direita que se quer mais limpinha... Como esta não deixa suficientemente claro que não quer papo com fascistoides e não os denuncia por aquilo que são — inimigos da democracia —, os brucutus a comem pelas pernas mundo afora. É elementar.
O resultado surpreendeu as pesquisas eleitorais, e é evidente que aumentaram as chances de Massa vir a se sagrar vitorioso, assim como diminuíram as de Milei. Não custa lembrar a musiquinha infame cantada a plenos pulmões pelo "palhaço macabro" no seu último ato de campanha: "Primera vuelta la puta que lo parió!". Ou: "Primeiro turno, puta que pariu!" Pois é. Não deu. E o bufão ficou muito longe disso: precisaria ter obtido ou 45% mais um dos votos ou 40% desde que a uma distância de 10 pontos do segundo colocado. Em vez disso, chegou 6,31 atrás de Massa, que tinha sido o grande derrotado das PASO.
O pleito deste domingo também elegeu 24 das 72 cadeiras do Senado (um terço) e pouco mais de metade da Câmara: 130 das 257. Os peronistas elegeram 12 senadores e passaram dos atuais 32 para 34. A coalizão liderada por Bullrich naufragou de novo: conquistou apenas dois e perdeu nada menos de 9 assentos, caindo de 33 para 24. A maçaroca encabeçada pelo porra-louca se deu bem: vai saltar de zero para 8. Perceberam que é quase o número de parlamentares que a direita tradicional perdeu? Sim, o peronismo não está no melhor da sua forma, mas está longe de acabar. A "JxC", formada principalmente pela tradicional União Cívica Radical e Proposta Republicana, beija a lona.
Quebrou a cara também na Câmara. A bancada caiu de 118 para 93, 25 a menos. O hospício de Milei saltou de 3 para 37. O peronismo perdeu cadeiras, mas nada desesperador: tem 118 e vai ficar com 108. Axel Kicilof, na ala kirchnerista do peronismo, se reelegeu governador da Província de Buenos Aires (o correspondente ao "estado" por aqui) no primeiro turno, com 44,88%, seguido por Néstor Grindetti, da JxC (26,62%) e Carolina Pìparo (A Liberdade Avança), com 24,59%.
Na Cidade Autônoma de Buenos Aires (CABA), que só chamamos pelos dois últimos nomes, Bullrich venceu: 41,22% contra 32,27% de Massa e 19,84% de Milei. Anote-se, no entanto: ela perdeu 7,73 pontos em relação às PASO; o ministro da economia ganhou 8,08, e o Doidão levou mais 1,73. Quando se considera a Província de Buenos Aires, onde estão quase 30% dos 34,74 milhões de eleitores do país, também houve mudanças significativas: o candidato do União Pela Pátria ficou com 42,87% (8,27 pontos a mais do que nas prévias); o aloprado, 25,71% (0,64% a menos), e a direitista, digamos, tradicionalista, 24,09% (6,04 a menos).
Outros dados importantes a serem considerados: Massa venceu em 13 províncias; Milei, em 10, e Burllrich, apenas na capital. Mas há um dado ainda mais relevante: em relação às prévias, o peronista perdeu votos, bem poucos, em apenas duas: Entre Ríos (de 33,39% para 33,35%) e Catamarca (de 44,99% para 42,79%). Milei, por sua vez, perdeu apoios em 20 e teve ganhos em apenas quatro. A candidata da dita direita tradicional obteve percentuais inferiores em todas elas.
E O FUTURO?
E agora? O candidato dito "libertário" construiu a sua campanha com ataques à dita política tradicional. Nesse particular, com efeito, repetiu a conversa obscurantista de Jair Bolsonaro aqui no Brasil: todos os políticos seriam iguais, incluindo as expressões conhecidas do conservadorismo, e seu diferencial estaria no fato de não ser político. Conhecido o resultado, a conversa já mudou.
Agora, ele propõe uma aliança com Bullrich e com a "JxC" contra o kirshnerismo. No discurso depois de conhecidos os resultados, resolveu acenar para terceira colocada: "A campanha fez com que muitos de nós que queremos mudanças entrássemos em conflito; por isso, vim acabar com esse processo de agressões e ataques." E aí se disse disposto a "embaralhar o jogo de novo", "começar do zero", para "acabar com o kirshnerismo".
Pois é... Ocorre que a parte mais sedutora — para os que caíram na falácia — do seu discurso está justamente na fúria estúpida contra a política e os políticos. Quer uma aliança com a JxC, onde está, por exemplo, a União Cívica Radical, um dos partidos tradicionais da Argentina. Será que suas lideranças abraçarão teses alopradas como a dolarização da economia e fim do Banco Central? Sem a porra-louquice e o discurso destrambelhado, Milei ainda é Milei? Devemos imaginar a sisuda Bullrich sobre um palco, servindo de coadjuvante ao delinquente, fantasiada de leoa?
A candidata que chegou em terceiro, por sua vez, já deixou claro que não há chances de fazer aliança com Massa. Cercada de alguns figurões do seu partido, negou-se até a fazer a menos um aceno educado ao candidato do União Pela Pátria: "O populismo empobreceu o país e não serei eu quem virá felicitar o regresso ao poder de alguém que fez parte do pior governo da história argentina". Parece que os conservadores de lá correm o risco de repetir o erro dos conservadores de cá: não distinguir um democrata, ainda que o considere errado, de um aventureiro. A direita democrática está sendo engolida pela estupidez reacionária também em razão de sua pusilanimidade moral.
Massa fez o mais óbvio de todos os discursos: à frente de uma bandeira da Argentina, projetada no telão, sem mais ninguém para dividir o palco, fez um convite à unidade do país.
ENCERRO
Vamos ver. O grande risco para a democracia e o salto realmente no escuro estava em Milei vencer no primeiro turno e fazer uma base parlamentar que lhe desse sustentação no Congresso. Não aconteceu. Deve moderar o tom antiestablishment de sua pregação. Também parece pouco provável que, dependendo do apoio de setores mais tradicionais da política, insista em alucinações como "fim do banco central" e dolarização da economia. Seu partido tem apenas 37 dos 257 deputados e 8 dos 72 senadores.
Em dois meses, em relação às PASO, ficou estagnado, e perdeu voto em quase todas as províncias; com Massa, aconteceu o contrário. A Argentina ainda não olhou o abismo. Mas continua bem perto. Dados os primeiros sinais, se o país depender da responsabilidade dos ditos conservadores, escolhe o buraco sem fundo. Que seja salvo do pior pelo povo.
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