Mutismo diante de Campos Neto, o homem da cobra, fere a própria democracia
É espantoso o que se viu na sexta passada, e quase não se deu um pio na imprensa. Roberto Campos Neto, o autônomo presidente do Banco Central, participou, na Fundação Getúlio Vargas, de um evento em homenagem a Affonso Celso Pastore — que já ocupou a sua cadeira e morreu no dia 21 de fevereiro, aos 84 anos — e fez considerações que contribuíram para alimentar o pessimismo com a economia e para aumentar imediatamente os juros futuros. É um escracho.
Campos Neto tem falado ultimamente mais do que o homem da cobra. Vacilou, e lá está ele num seminário, a exemplo daquele de 17 de abril, em Washington, quando antecipou que, por ele, mandaria às favas a palavra do BC e defenderia uma queda menor da taxa de juros, não o 0,5 ponto que havia sido anunciado. E assim se fez, como sabemos, por 5 a 4.
Na sexta, o doutor agiu como um sabotador. Desconheço caso de um chefe da autoridade monetária que fala para degenerar as expectativas e para tornar ainda mais difícil o trabalho do governo. Os mercados ainda estavam abertos. E o que fez este gigante da "isenção" e do "rigor técnico", como querem os seus hagiógrafos que hoje ocupam o lugar que já foi do "jornalismo econômico"?
Afirmou que existem vários fatores a apontar uma possível elevação da inflação. E, creiam!, ele evocou o desastre do Rio Grande do Sul vis-à-vis o preço dos alimentos e a questão fiscal. É claro que o país precisa ficar atento a isso tudo, mas indago: cabe a tal autoridade ficar babando pessimismo por aí e se comportar como um anunciador de temporais, agora na economia? É um despropósito. O que aconteceria com alguém que trilhasse esse caminho na iniciativa privada?
E avançou ao elencar os tai "fatores", além da questão fiscal: o tema externo — suponho que se referisse aos juros elevados nos EUA — e "a credibilidade do BC". Como é???
Credibilidade do BC??? Certamente o sr. Campos Neto considera que são dignos de todas as honras ele próprio e os outros quatro que mandaram à "zerda" o chamado "forward guidance" do BC — votando por uma queda de 0,25 ponto nos juros — e que perniciosos e ameaçadores são os que cumpriram a palavra empenhada.
Essa fala é muito perigosa. Quando os "fanáticos do campismo" começaram a falar da "divisão do BC", identificando com o governo os quatro que votaram a favor do cumprimento da palavra do próprio banco, estava na cara que o que se pretendia, desde aquele momento, era pôr sob suspeição um Copom que terá sete dos nove membros indicados por Lula no começo do ano que vem. Todos terão de ser aprovados pelo Senado, conforme a lei da autonomia.
Informou o site InfoMoney -- insuspeito de, sei lá, alguma heterodoxia -- no sábado, referindo-se à sexta:
"Dadas no meio da tarde, as declarações de Campos Neto reforçaram o movimento de alta de juros e câmbio. Depois de passarem a metade do dia em queda, os contratos de juros inverteram o sinal e começaram a subir. Por volta das 17h15, as taxas dos contratos de depósito interfinanceiro (DI) para janeiro de 2025 avançavam de 10,390%, na quinta-feira, para 10,405%, enquanto a do DI para janeiro de 2027 subia de 11,080% para 11,135%."
Importa pouco, leitor, saber que lugar você ocupa no debate: se está entre aqueles que pensam que o governo faz a coisa certa; se avalia que ele só faz besteira; se considera que ora acerta, ora erra... Isso é do jogo, segundo escolhas, valores, alinhamento ideológico etc. É tudo legítimo. As sociedades são assim mesmo.
Se, no entanto, você não vê nada de anormal num presidente do Banco Central que:
- anuncia perspectivas negativas para a inflação, manifestando-se fora da ata ou de um depoimento no Senado, intranquilizando o mercado;
- usa uma situação (Rio Grande do Sul) dramática, contingente e ainda não precificada para aumentar a incerteza sobre os preços e sobre a questão fiscal;
- anui com a canalha que põe em dúvida a credibilidade da autoridade monetária por questões puramente ideológicas;
- induz, com o seu comportamento, uma elevação dos juros futuros;
- atua como um prosélito vulgar;
Bem, meu caro leitor, se você acha que tal comportamento está adequado às responsabilidades de um presidente do Banco Central, então você também já foi sequestrado pela mistificação.
O argumento fulcral em favor da autonomia do BC, vocês devem se lembrar, era preservar a política monetária de arroubos populistas e dos interesses eleitoreiros dos governos de turno. Mas nunca se disse, porque seria uma estupidez, que, nesse trabalho, o chefe da autoridade monetária deve contribuir para elevar a especulação, alimentar as incertezas e dificultar a administração de expectativas.
Minha simpatia por populistas é negativa. E acho positivo que se criem limites que impeçam que hipotequem o futuro de gerações com suas eventuais maluquices. Mas que se note: nas democracias, são ao menos eleitos. Ainda assim, insisto, é preciso contê-los. A questão é saber se é justo e correto trocá-los por quem, eleito por ninguém, pode, de forma deliberada, piorar a vida de milhões.
Campos Neto deveria pedir desculpas e se impor o silêncio obsequioso em público e no privado, já que, com efeito, ninguém manda nele. Nem o povo. A menos que esteja de olho na eventual criação do cargo de presidente perpétuo do Banco Central.
O mutismo diante da aberração de Campos Neto agride o fundamento da própria democracia.
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