Reinaldo Azevedo

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Opinião

Freio na esbórnia: acordo pode pôr fim a emenda impositiva no modo original

Nada será como antes para os beneficiários do Estado Paralelo das Emendas se aquilo que foi acordado nesta terça entre representantes dos Três Poderes for efetivamente posto em prática. Como tal acordo nasce de uma liminar concedida pelo ministro Flávio Dino, do STF, com o endosso dos outros 10, ou se cumpre o combinado, ou, então, estaremos diante de uma tentativa de mandar a Constituição às favas e o Supremo ao plantio de batatas. Até que o Congresso não apresente os critérios de transparência para a execução das emendas e que não se estabeleçam regras de parceria entre Legislativo e Executivo para a distribuição dos recursos, fica valendo a liminar, e o pagamento das ditas-cujas está suspenso. Vamos ver.

OS PRIMÓRDIOS
1: O PSOL entrou com uma ADI no STF arguindo a inconstitucionalidade das emendas impositivas.

2: a ADI, assinada pelos advogados Walfrido Warde, Rafael Valim e Pedro Serrano, entre outros, aponta que as emendas impositivas violam o princípio da separação dos Poderes, comprometendo suas independência e harmonia, e ferem o princípio federativo e democrático;

3: o partido pediu a concessão de uma liminar suspendendo a eficácia das emendas constitucionais que permitiram a progressiva farra orçamentária de 2015 a esta data, até que o STF julgasse o mérito da ADI;

4: Dino avisou que o mérito fica para exame do plenário, mas concedeu liminar sustando a execução das emendas "até que os Poderes Legislativo e Executivo, em diálogo institucional, regulem os novos procedimentos conforme a presente decisão, sem prejuízo de obras efetivamente já iniciadas e em andamento, conforme atestado pelos órgãos administrativos competentes, ou de ações para atendimento de calamidade pública formalmente declarada e reconhecida".

O QUE ACONTECEU NESTA TERÇA
5: Reuniram-se no STF os 11 ministros da Corte; o procurador-geral da República, Paulo Gonet; os respectivos presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MGT), e os ministros Rui Costa (Casa Civil) e Jorge Messias (AGU). Com que finalidade mesmo? Para estabelecer três coisas:
- regras de transparência para a execução das emendas;
- definir que as emendas parlamentares não podem ignorar as ações estruturantes do Executivo;
- impor um limite para a correção das emendas ano a ano.

NOTA CONJUNTA
6: Uma nota conjunta estabeleceu as diretrizes a serem acordadas entre o Legislativo e o Executivo para a execução das emendas. Eis o consenso até agora:
- Emendas individuais na modalidade PIX
ficam mantidas, com impositividade, observada a necessidade de identificação antecipada do objeto, a concessão de prioridade para obras inacabadas e a prestação de contas perante o TCU.

Como é hoje:
As chamadas emendas PIX são enviadas pelos parlamentares diretamente a Prefeituras, sem passar por nenhum ente federal -- logo, não são submetidas ao crivo do Tribunal de Contas da União e estão sujeitas apenas os Tribunais de Contas dos Estados. Não se tem controle de absolutamente nada. Atenção! A "Emenda Pix" não é uma modalidade, mas apenas uma forma de pagamento das emendas individuais.

- Demais emendas individuais:
ficam mantidas, com impositividade, nos termos de regulação acerca dos critérios objetivos para determinar o que sejam impedimentos de ordem técnica (CF, art. 166, § 13), a serem estabelecidos em diálogo institucional entre Executivo e Legislativo. Tal regulação deverá ser editada em até dez dias.

Como é hoje
Em razão da impositividade, o Executivo não tem interferência nenhuma na destinação das emendas. A Constituição prevê, como se lê acima, impedimentos de ordem técnica, mas eles não estão claros. Executivo e Legislativo devem apresentar uma proposta de regulação.

No Orçamento de 2024, estão previstos R$ 25,1 bilhões para as emendas individuais. Cada deputado tem direito a R$ 37,9 milhões, e cada senador, a R$ 69,6 milhões. Já foram empenhados até agora R$ 21,3 bilhões e efetivamente pagos R$ 14,1 bilhões. Desse total, R$ 8,2 bilhões foram destinados aos municípios por meio das "emendas pix" -- sem, pois, qualquer controle.

Emendas de bancada:
Serão destinadas a projetos estruturantes em cada Estado e no Distrito Federal, de acordo com a definição da bancada, vedada a individualização.

Como é hoje
Inexiste qualquer critério para o pagamento dessas emendas, que também são impositivas. O dinheiro é atomizado em centenas de obras país afora, sem vinculação com os chamados projetos estruturantes.
Para essa modalidade, o Orçamento prevê R$ 8,5 bilhões. Cada estado tem o direito a R$ 316,9 milhões. Já foram empenhados R$ 6,1 bilhões e efetivamente pago R$ 1,7 bilhão.

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Emendas de comissão:
Serão destinadas a projetos de interesse nacional ou regional, definidos de comum acordo entre Legislativo e Executivo, conforme procedimentos a serem estabelecidos em até dez dias.

Como é hoje
As emendas de comissão não são impositivas na letra da lei, mas acabam se tornando na lógica da chantagem que passou a orientar o Congresso nessa área. Como se lê acima, o "interesse nacional ou regional" terá de orientar a destinação desse dinheiro, e tal interesse tem de ser definido, de comum acordo, pelo Legislativo e pelo Executivo. Hoje, essas emendas nem mesmo têm autoria conhecida.
Estão previstos para esse tipo de emenda R$ 15,4 bilhões. Já foram empenhados R$ 10,3 bilhões, e R$ 7,4 bilhões já foram pagos.

Crescimento do valor das emendas
Fica acordado que Executivo e Legislativo ajustarão o tema da vinculação das emendas parlamentares à receita corrente líquida, de modo a que elas não cresçam em proporção superior ao aumento do total das despesas discricionárias. O relator irá, oportunamente, reexaminar o processo.

Como é hoje?
Não há limite para a expansão das emendas. Elas não estão sujeitas, por exemplo, às regras do arcabouço fiscal, o que é, por si, uma aberração. E, assim, vão crescendo ano a ano.

ABERRAÇÃO
7 - De ousadia em ousadia, de agressão em agressão à Constituição, chegou-se a uma situação absolutamente insustentável. O Congresso reserva para si mesmo, alheio a qualquer procedimento de transparência e descolado de qualquer eixo ou programa de desenvolvimento, R$ 49 bilhões, o que corresponde a quase um quarto dos pouco mais de R$ 200 bilhões de gastos discricionários. Isso não existe em nenhum lugar do mundo.

O que se tem é um progressivo sequestro do governo federal pelo Congresso. Começou em 2015, com as medidas individuais impositivas; seguiu em 2019, com as de bancada, e prosseguiu em 2023 e 2024, com as emendas de comissão.

Para vocês terem uma ideia da sanha com que se avança no Orçamento, as emendas impositivas somavam R$ 16,8 bilhões em 2022. Saltaram para R$ 28,9 bilhões no ano passado e chegaram a R$ 33,6 bilhões neste ano.

Não estão nessa conta as de comissão. Em 2021, eram ZERO. Neste ano, estupefacientes R$ 15,5 bilhões. Elas passaram a ocupar o lugar, na verdade, das emendas do relator — o chamado "Orçamento secreto". As respectivas assessorias da Câmara e do Senado tiveram a coragem de dizer ao ministro Flávio Dino que não tinham como identificar os patronos de envios milionários de dinheiro.

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Vale dizer: alguns patriotas que vivem a tonitruar no Congresso que o governo deve cortar gastos não só assistem a essa esbórnia como dela participam.

IMPOSITIVIDADE CONTINUA, MAS...
8 - Prevalecendo esse acordo, a impositividade de emendas continua, mas "não como soía", diria o poeta. Não como era antes. Tem-se assistido a uma verdadeira farra, em que um Congresso que não responde pela eficácia de políticas públicas -- e nem é cobrado por isso -- abocanha quase um quarto do que resta ao governo, descontados os desembolsos obrigatórios.

Esse dinheiro poderia, vá lá, ter a marca do parlamentar, mas seria de esperar que estivesse atrelado a algum projeto de fôlego. Em vez disso, bilhões de reais expandem o cemitério de obras paradas país afora.

E SE NADA FOR APRESENTADO?
9 - Se nada acontecer e não se chegar a um consenso que atenda às exigências da liminar endossada pelos 11 ministros do STF, a execução das emendas segue suspensa. Cumpre lembrar a decisão do tribunal:
I: Não é compatível com a Constituição Federal a execução de emendas ao orçamento que não obedeçam a critérios técnicos de eficiência, transparência e rastreabilidade, de modo que fica impedida qualquer interpretação que confira caráter absoluto à impositividade de emendas parlamentares;

II: É dever do Poder Executivo aferir, de modo motivado e transparente, se as emendas parlamentares estão aptas à execução, conforme requisitos técnicos constantes da Constituição Federal, normas legais e regulamentares;

III: A execução das emendas parlamentares impositivas, quaisquer que sejam as modalidades existentes ou que venham a ser criadas, somente ocorrerá caso atendidos, de modo motivado, os requisitos, extraídos do texto da Constituição Federal e das normas infraconstitucionais aplicáveis, sem prejuízo de outras regras técnicas adicionalmente estabelecidas em níveis legal e infralegal, conforme rol exemplificativo que se segue:
- a) Existência e apresentação prévia de plano de trabalho, a ser aprovado pela autoridade administrativa competente, verificando a compatibilidade do objeto com a finalidade da ação orçamentária, a consonância do objeto com o programa do órgão executor, a proporcionalidade do valor indicado e do cronograma de execução;
- b) Compatibilidade com a Lei de Diretrizes Orçamentárias e com o Plano Plurianual;
- c) efetiva entrega de bens e serviços à sociedade, com eficiência, conforme planejamento e demonstração objetiva, implicando um poder-dever da autoridade administrativa acerca da análise de mérito;
- d) Cumprimento de regras de transparência e rastreabilidade que permitam o controle social do gasto público, com a identificação de origem exata da emenda parlamentar e destino das verbas, da fase inicial de votação até a execução do orçamento;
- e) Obediência a todos os dispositivos constitucionais e legais que estabeleçam metas fiscais ou limites de despesas.

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LIRA E O DOIS CONTRA UM
10: Consta que Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara não gostou do resultado e reclamou que teria havido, na conversa, uma espécie de "dois Poderes contra Um" -- vale dizer: STF e Executivo teriam se unido contra o Legislativo.

Vamos lá:
- é mentira que tenha havido uma dobradinha entre os autores da ADI e o Poder Executivo;
- afirmar que que há um "dois contra um" implica, entendo, um ataque inaceitável do presidente da Câmara ao STF, que simplesmente está cobrando que se cumpram preceitos constitucionais no emprego de um dinheiro que é público. Justamente porque os recursos não pertencem a um Poder ou a Outro, têm de ser empregados no interesse de todos. E Isso só se realiza cumprindo o que dispõe a Constituição.

ENCERRO
No que respeita ao Orçamento, conta-se de 2015 a esta data a história do progressivo sequestro do Executivo pelo Legislativo. Como um Poder resolveu tomar para si a prerrogativa que ao Outro pertence, sem ter de prestar contas a ninguém, o que se tem é a também progressiva degeneração de valores republicanos.

Por meio do Orçamento, o Congresso quer os benefícios de atuar como governo sem ter o ônus de governar. Não por acaso, parlamentares às pencas que se fartam com emendas ao arrepio de qualquer controle são os mesmos que impõem derrotas ao governo quando se trata, por exemplo, de recompor receitas. Tomam com uma das mãos fatia considerável do Orçamento e, com a outra, garantem desonerações a apaniguados.

O acordo que ora se propõe é o primeiro freio de arrumação no destrambelhamento que começou em 2015. Vamos ver.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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