É possível fazer debate decente? Cadeirada no bom senso e tolices de gênero
É claro que eu vou escrever sobre a "noite da cadeirada". Mas preciso do contexto.
Escrevi aqui e comentei no "Olha Aqui", neste UOL, e em "O É da Coisa", na BandNews FM e no BandNews TV, que a ABC News havia dado algumas boas lições sobre o modo de fazer um debate. Refiro-me ao confronto entre Donald Trump e Kamala Harris ocorrido na Filadélfia, no dia 10, com mediação exemplar de David Muir e Linsey Davis. Fez-se, então, um real confronto de ideias. Foi tão bom tecnicamente que Trump odiou e ameaçou processar a emissora. No Brasil, antes de se lamentar a escuridão, é preciso indagar se não se ajuda a apagar a luz.
É mais fácil, claro!, organizar um embate entre dois postulantes do que entre seis. Ainda assim, as virtudes que vejo no modelo da ABC News se aplicam. Vamos de cara ao que não funciona: candidato perguntar a candidato. Para quê? Convenham: quem pergunta não quer ouvir a resposta. Quem responde finge não ter ouvido o que foi perguntado. Os postulantes usam o tempo para dizer o que vão fazer e para desqualificar o adversário. Ou, então, assiste-se à "dobradinha": dois se juntam para atacar um terceiro.
Se o objetivo é mesmo entender o que pensa cada candidato e saber quais são as suas propostas, os que organizam o encontro tem de ter o controle das regras. Quem não aceitar os termos que vão regular o embate que fique fora por escolha própria.
E quem se encarrega das questões? O órgão de imprensa que organiza o debate. Que se procedam os sorteios de respondedores, perguntas e comentadores. Mas é preciso que a imprensa, a exemplo do que fizeram Muir e Davis, possam dizer: "Você -- no Brasil, 'a senhora' ou 'o senhor' -- não respondeu a pergunta. Mais: diante de uma mentira evidente, é preciso repor, se possível, a verdade na hora, não depois, a exemplo do que fez Muir com Trump quando o aloprado acusou os imigrantes de comerem cães e gatos dos americanos na cidade de Springfield:
"Só quero esclarecer aqui: o senhor mencionou Springfield, Ohio. E a ABC News entrou em contato com o prefeito da cidade. Ele nos disse que não houve relatos confiáveis de alegações específicas de animais de estimação sendo prejudicados, feridos ou abusados por indivíduos dentro da comunidade de imigrantes".
Ou quando o republicano acusou a imigração de estar na raiz de uma suposta e inédita escalada da violência:
"Presidente Trump, como o senhor sabe, o FBI diz que os crimes violentos, como um todo, estão caindo neste país"
No primeiro caso, restou a Trump dizer que falava o que ouvira na TV. No segundo, disse que o FBI estava mentindo.
Um debate não pode se confundir com molecagem e trapaça. É inaceitável que o candidato vá ao encontro com o objetivo de não responder o que lhe foi perguntando. Se a violência física é obviamente inadmissível, também é preciso conter, sob pena de expulsão, a violência verbal, o mero achincalhe, o comportamento bandoleiro.
AGORA, A CADEIRADA
Antes de José Luiz Datena (PSDB) dar uma cadeirada -- ou "bancada" -- no "coach" Pablo Marçal (PRTB), já havia baixaria de sobra no debate promovido pela TV Cultura, na noite deste domingo, entre os postulantes à Prefeitura de São Paulo.
Marçal é experimentado nas artimanhas de ação e reação. Ganhou muito dinheiro com isso. Levou ao ar uma acusação pesada, de suposto assédio sexual, contra o oponente -- caso que conta com um desmentido assinado pela própria acusadora. E o desafiou para o embate físico:
"Você é um arregão. Você atravessou o debate esses dias para me dar um tapa e falou que você queria ter feito. Você não é homem nem para fazer isso. Você não é homem".
Ao perceber que o outro erguia a cadeira para atacá-lo, não hesitou. Disse: "Vai!".
Não custa notar que "arregão" foi o adjetivo que o bolsonarismo, com vídeo reproduzido pelo próprio Jair Bolsonaro, pespegou no próprio Marçal.
É evidente que não endosso o comportamento de Datena e creio que ele próprio deve saber que passou dos limites. Mas não vou ignorar o comportamento delinquente de Marçal ao longo desse e de outros embates. Ele não comparece a esses eventos para expor propostas, defender ideias, acusar falhas em curso na gestão da cidade.
Já afirmei isto e repito: não há lei que imponha a presença num debate de um candidato que nem direito ao horário eleitoral tem porque seu partido, afinal, não tem existência de fato.
Aí cumpre que as emissoras e organizadores de debates se perguntem: "Afinal, o que queremos? Um encontro para que o público possa avaliar a qualidade das propostas dos postulantes?" Se é assim, então Marçal não pode estar presente. É simples. E há amparo na lei para impedir a sua pantomima.
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Na única vez em que tentou ser propositivo -- e se deu justamente respondendo a uma pergunta da produção sobre o que fazer com transporte público, ficou claro que Marçal não tem a menor ideia sobre... o que fazer com o transporte público. A saída? Respondeu isto:
"A gente vai recuperar a vocação dessa cidade com algumas indústrias e profissões do futuro (...) Nós vamos criar dois milhões de empregos em 1.460 dias. E quem cria não é o governo. O governo é facilitador. Essa é uma promessa que vai ser cumprida".
Só para vocês terem uma noção do tamanho do despropósito: a população ocupada na cidade, segundo o IBGE, era de 6.728.485 em 2022. Digamos que seja agora de 7 milhões. Marçal promete criar o correspondente a 30% das vagas de trabalho hoje ocupadas. Trata-se de uma besteira estratosférica. Obviamente, não sabe o que diz sobre transporte, sobre emprego e sobre nada. Foi a única vez que tentou parecer propositivo. Percebeu que estava se dando mal e, então, investiu no caos.
A Internet já está infestada de vídeos com o rapaz numa ambulância, recebendo oxigênio, sabe-se lá por quê. Também circulam montagens com a facada em Bolsonaro, o tiro na orelha de Donald Trump e, agora, a cadeirada em Marçal. Só falta ele resolver dar entrevistas numa cama de hospital...
OUTRAS LÁSTIMAS
Com Datena e Marçal fora do debate, Guilherme Boulos (PSOL) e Ricardo Nunes (MDB) travaram os embates mais duros. O candidato do PSOL acusou irregularidades em contratos da Prefeitura. O prefeito, no melhor figurino bolsonarista, o acusava de ser invasor de propriedade e, assumindo o figurino de Marçal, chegou a indagar ao oponente: "Você cheirou? Você está louco, rapaz?"
Cumpre notar que o embate direto entre os dois não foi por escolha, mas por sorteio.
Tabata Amaral (PSB) resolveu impor um viés de gênero ao encontro e chegou a elogiar a bolsonarista radical Marina Helena, do Novo:
"Eu quero agradecer também à Marina por, aparentemente, ter sido a única que quis manter o nível do debate dos que restaram".
A "Maria Helena com nível", nas palavras de Tabata, já tinha apresentado a sua proposta para segurança pública. Esta:
"Eu vejo que o primeiro ponto para a gente realmente cuidar da segurança na cidade é não eleger a esquerda, que passa a mão na cabeça de bandido. Não dá, gente, para eleger aqueles que não querem que a polícia seja armada; não dá para eleger aqueles que são contra a redução da maioridade penal ou que são contra o fim da saidinha. Esse é o primeiro ponto."
Houve um outro momento de "nível" de tal senhora. Ainda no debate, Marçal afirmou que Marina Helena teria algumas coisas contra Nunes. Instou-a, então, a dizer o que ela sabia e que estaria sendo omitido pelo "consórcio comunista" da mídia. A candidata do Novo respondeu:
"Bom, Marçal, eu vejo que você não fez uma pergunta diretamente para mim, né? Eu gostaria que, às vezes, você se dirigisse diretamente a mim porque eu vejo isso com uma certa falta de respeito. Falando de Nunes, eu mostrei já no outro debate que, na rede da Prefeitura, tinha sim um programa chamado 'Saúde para Todes' e vários outros problemas que a gente vê aí com linguagem neutra, inclusive mudança de gênero para crianças. Mas, se você não tem uma pergunta para mim, Marçal, eu tenho agora uma pergunta para você muito simples: eu fui a primeira a te defender quando caíram as suas redes sociais porque eu sou contra a censura de todo tipo. Nessa manifestação do 7 de Setembro, eu fiquei com uma grande dúvida: afinal de contas, Marçal, você é a favor do impeachment do Alexandre de Moraes?
E o "coach" respondeu que é. Marina voltou à carga:
"Bom, gente, vamos lá. A direita tá cansada de ser enganada, essa é a grande verdade. A gente precisa de líderes com coragem (...). Aliás, eu cheguei na hora na manifestação do 7 de Setembro. Eu discursei no caminhão de som; depois, eu fui ao do Silas [Malafaia], e a gente estava ali por um motivo único que é o fim da censura do nosso país. É importante sim que verdades sejam ditas, e uma delas é "Fora, Xandão"!
É o puro chorume do bolsonarismo, que Tabata considerou ser "de nível". Nas suas palavras finais, a candidata do PSB insistiu no viés de gênero:
"É fato que existe um candidato que não respeita ninguém e vem tumultuando desde o primeiro debate. Mas esse candidato saiu. O Datena saiu. E, ainda assim, o nível continuou baixo. Ainda assim, os egos e os ataque prevaleceram. (...) Eu quero que você reflita comigo se esses homens, que, claramente não colocam isso [o atendimento à população] como prioridade, se eles vão ter a humidade, a seriedade para enfrentar esses problemas tão graves".
Na sequência, demonstrando que ego é mesmo um problema masculino, emendou:
"Eu venho demonstrando que me preparei, que tenho um bom time, mas acho importante dizer também que tenho muita pressa. Eu, como deputada federal, fui autora, coautora, relatora de 19 projetos que viraram lei (...).
ENCERRO
Estou certo de que as bobagens que Marina Helena disse no debate não guardam nenhuma relação com o fato de ser mulher. Têm a ver, isto sim, com o seu reacionarismo abjeto. Afinal, na única vez em que a candidata do Novo confrontou Marçal, um homem, ela o estava acusando de não ser reacionário o bastante.
Também se baixa o nível quando se confunde gênero com categoria de pensamento.
Vira uma cadeirada no bom senso.
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