Suspensão da X atualiza a luta entre civilização e barbárie nas democracias
A notícia seca, desidratada de contexto e de sutilizas, é esta: "Moraes dá cinco dias para a X provar a representação legal no Brasil e resolver pendências". A notícia que realmente importa, no entanto, e que dá conta do fenômeno em curso, em vez de escondê-lo na idiotia da objetividade, é outra: Judiciário brasileiro trava a disputa mais importante em curso no mundo entre o estado nacional e a autocracia transnacional de uma "big tech". Vamos a uma longa digressão.
A DIGRESSÃO
Atentem para o modo como Elon Musk reduziu a X à sua própria dimensão. A empresa deixou de ser uma organização que entrega um produto ou serviço, em articulação com outros atores sociais, submetida a regras de domínio público -- isto é, que podem ser acessadas por qualquer um, segundo um princípio republicano --, disciplinada pela lei, com a finalidade de obter lucro, para gáudio de acionistas, e de investir. Musk passou a encarnar a X, transformada num instrumento de seus interesses e delírios. Se estes se chocam com a institucionalidade de um país, sua resposta é a derrisão reacionária, arruaceira, delinquente. Esse vedetismo de tirano, é bom notar, mascara um tanto o caráter das "big techs", que se impõem menos pela estridência dos plutocratas do que pela captura silenciosa do mercado e das vidas privadas. Silenciosa? Tudo se passa como se seu formidável domínio da vida e da experiência em sociedade caísse, como escreveu um pensador, da árvore dos acontecimentos.
Nos domínios das redes, vive-se um tempo em que o crime reivindica o estatuto de "liberdade de expressão", de modo que um direito fundamental acaba se transformando em sinônimo de exclusão, intolerância e achincalhe de grupos subalternizados, que já contam com menos instrumentos de poder. A título de ilustração, observo: vejam a frequência com que se reclama da dita "patrulha do politicamente correto". É claro que há grupos que se dedicam ao vigilantismo da linguagem, por exemplo, com exageros, idiossincrasias e solipsismos cretinos. No mais das vezes, no entanto, os que reclamam dos limites que lhes seriam impostos mal conseguem esconder que, sem os reducionismos derrisórios contra os que já são excluídos, mal teriam o que enunciar. Nesse caso, a sua "liberdade de expressão" reivindica, na verdade, a impunidade para ofender, agredir e degradar o outro.
"Reinaldo, mas por que as redes não se transformaram na ágora de uma democracia que muitos diriam ser a 'verdadeira', numa planetária 'cidade exata, clara, aberta', como escreveu um grande poeta?" Ah, minha gente... Creio que pelos mesmos motivos, e não vou aqui resumir a história da humanidade, que ainda não se inventou a convivência humana sem Estado — ou sem seu correspondente, em sociedades tribais, que é a autoridade religiosa. No primeiro caso, o ente estatal guarda e aplica as leis; no segundo, aquele que fala em nome de crenças e mitos fundantes guarda e presentifica os arcanos. Umas e outros, leis e arcanos, exercem o controle social por meio da imposição de limites aos apetites. Sem freios, eles predispõem para a crueldade.
Atenção para isto: "Ter feito a alguém um mal maior do que se pode ou se está disposto a sofrer inclina quem praticou a odiar quem sofreu o mal, pois só se pode esperar vingança ou perdão, e ambos são odiosos". É Thomas Hobbes no "Leviatã". Aí está a gênese psicossocial do fanatismo, que as redes alimentam por meio dos algoritmos. Os que cultivam as mesmas vontades compõem as "bolhas de crueldade" sem limites, as milícias virtuais. Par elas, inexiste a condescendência respeitosa, que é civilizadora, com crianças, idosos ou deserdados, por exemplo. Ao contrário: a vulnerabilidade dos fracos "excita a fúria do algoz", como escreveu outro poeta.
Ou bem nos damos conta de que, nessa toada, pode-se perder mais do que a democracia, e nos afundamos na guerra de todos contra todos, ou buscamos saídas. Se damos por impossível a "paz perpétua" kantiana como algo a se realizar amanhã, descartá-la como uma das formas de cultivar o bem — e, pois, como uma inspiração a orientar a nossa prática e as nossas decisões — corresponde a escolher a sociedade em que triunfa a fúria dos algozes.
ACORDO SOBRE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
O sempre excelente Jamil Chade informa no UOL:
"Pela primeira vez, governos se unem para tentar estabelecer padrões éticos e de direitos humanos sobre o desenvolvimento da Inteligência Artificial e fechar o cerco em relação às plataformas digitais. Negociadores confirmaram que o pacto foi concluído, depois de quatro anos de reuniões e um intenso processo de diálogo.
O acordo deve ser oficialmente anunciado neste domingo (22), e os 193 países da ONU concordarão em criar um órgão internacional para examinar o desenvolvimento da IA. Segundo diplomatas, apenas uma 'surpresa' evitaria sua adoção.
O texto do acordo, obtido pelo UOL, indica uma ofensiva inédita diante da proliferação do uso da nova tecnologia e que é considerada por muitos como a arma de uma nova era e uma ameaça para a estabilidade internacional e democracia.
O texto depende de um consenso entre os 193 países em todos os temas, inclusive reforma da ONU, clima e outros aspectos do que está sendo chamado de Pacto do Futuro.
Pelo documento, fica estabelecido a criação na ONU de um Painel Científico Internacional Independente multidisciplinar sobre IA, com representação geográfica equilibrada. Seu objetivo: 'promover a compreensão científica por meio de avaliações de impacto, risco e oportunidades" da nova tecnologia'."
A ideia de se criar um ente internacional que possa examinar o desenvolvimento da Inteligência Artificial — e não são poucos os especialistas pessimistas sobre o nosso futuro; o da humanidade mesmo... — explicita, no fim das contas, o receio de que a distopia da tirania universal ocupe o lugar da utopia da paz perpétua. Se esta, por irrealizável, pôde nos inspirar, ao menos, como um "dever ser", a outra, factível, deixou de se manifestar apenas como um pesadelo e, em muitos aspectos, já está entre nós. Em vez da "ágora da cidade exata, clara e aberta", o que já se vê é a eclosão de ódios, paixões destrutivas e impulsos predatórios.
COMEÇANDO A VOLTAR A MORAES E À X
O conflito da "big tech" X com o STF, que o personalista Musk personalizou em Alexandre de Moraes -- prática infelizmente adotada por setores da imprensa --, é, hoje, único no mundo, dada a virulência com que o multibilionário investiu não apenas contra o ministro, mas contra o tribunal. Cumpre notar que o norte a orientar as decisões do ministro, endossadas pelo Tribunal ou pela Primeira Turma, não se situa no campo da especulação, vamos dizer, civilizatória, de que trato aqui.
O magistrado abraçou uma tese de solar simplicidade e eficácia: o que é crime fora das redes também é crime nas redes. Se a ninguém é facultado caluniar, difamar e injuriar na vida real; tampouco pode fazê-lo na virtual, até porque o alcance do agravo é exponencialmente maior. Se já inexistia especial licença, naquela vida anterior às "big techs", para cometer crimes de ódio, tentar golpe de estado, abolir o estado democrático e de direito ou incitar a prática de ilícitos, tampouco as redes devem ser um escudo protetor para tais ações deletérias porque, dado o seu alcance, empresta-se ao mal uma formidável força multiplicadora.
É urgente regular tanto o desenvolvimento da Inteligência Artificial como as próprias redes, a exemplo do que vêm fazendo países da União Europeia e do que já fez a Austrália. No âmbito dos Estados nacionais, a prática regulatória passa necessariamente pela responsabilização civil das "big techs". Mas que se note: isso não tem orientado as decisões de Moraes porque, por ora, inexiste legislação para tanto. O Código Penal, no entanto, existe. Nota à margem: não deixa de ser curioso que, não raro, sejam as redes a recorrer à Justiça contra a retirada de conteúdos do ar. Ora, como se dizem apenas hospedeiras de conteúdos de terceiros, não podendo, justificam, responder por ele, por que são elas a recorrer contra as ordens judiciais de exclusão? Adiante.
A ESCALADA
A X foi retirada do ar no dia 30 de agosto depois de o STF ter tentado, sem sucesso, excluir perfis que incitavam a violência contra delegados da PF -- e seus familiares -- que lideram inquéritos contra pessoas suspeitas de atentar contra a ordem democrática. No caso mais extremo, a mulher e a filha de um policial federal foram expostas, com a incitação: "Procura-se viva ou morto". Comentadores algozes indagavam no comentário: "Morto vale quanto?"
Uma primeira ordem de exclusão de tais perfis foi determinada no dia 7. Nada. Reiterou-se a ordem no dia 16. Inútil também. No dia 17, Musk deixou claro que não cumpriria a decisão. Preferiu anunciar que encerraria as atividades no Brasil, destituindo de suas funções a representante legal da empresa e dispensando o escritório de advocacia — Pinheiro Neto — que cuidava das demandas da X Brasil junto ao Supremo. O destrambelhado deu início a um processo de demonização de Moraes em seu perfil na rede de que é dono, expondo-o ao mundo como um ditador. Chegou a fazer uma convocação para que brasileiros participassem da patuscada bolsonarista do 7 de setembro, que pediu o impeachment do ministro. Havia ainda uma pendência de mais de R$ 18 milhões em multas não pagas.
No dia 30, Moraes suspendeu o X por descumprimento reiterado de decisões judiciais e por não contar com representação legal no país, conforme exige a lei. Adicionalmente, com amparo inequívoco na legislação brasileira, bloqueou recursos da Starlink para o pagamento das multas — já efetivado, e a conta foi liberada — e impôs multa de R$ 50 mil a quem recorresse a VPN para acessar a plataforma. Ridiculamente, o Novo recorreu com uma ADPF contra a suspensão, e a OAB, com outra contra essa última determinação. A PGR já fez picadinho das duas patuscadas.
Achando pouco, na quarta passada, o arruaceiro Musk aprontou mais uma. Recorreu a um servidor escudo para tornar o X disponível do Brasil, furando a determinação judicial. Em resposta, Moraes determinou uma multa de R$ 5 milhões/dia que, se não fosse honrada pela X Brasil, sairia das contas da Starlink mais uma vez. Na quinta, a X comunicou que havia desistido do estratagema criminoso.
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OLHAR APURADO
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Quero receberMais: retirou perfis do ar, atendendo a decisão do Supremo, e anunciou que voltaria a indicar um representante legal no país. Dois profissionais se apresentaram ao STF como advogados da X do Brasil. Moraes recusou a indicação antes da nomeação do representante legal no país, porque só este tem poder para constituí-los. Ontem à noite, a empresa fez a sua escolha.
A REPRESENTAÇÃO LEGAL E O MODO MUSK
Musk tem seu modo -- sempre ruim -- de fazer as coisas. A representante da X Brasil volta a ser a senhora Rachel de Oliveira Villa Nova Conceição, e os advogados por ela constituídos são ligados, mais uma vez, ao escritório Pinheiro Neto.
Perceberam o destaque dado ao "volta a ser" e o "mais uma vez"? Era Rachel a ocupar a função quando Musk anunciou, cheio de empáfia, o fim das "operações no Brasil", e eram profissionais do Pinheiro Neto a atuar em nome da empresa junto ao Supremo. Em menos de um mês, o tirano destituiu a representação e a renomeou e dispensou um escritório de advocacia e o recontratou.
Neste sábado, em novo despacho, Moraes escreveu:
"Diante disso, para que haja a efetiva comprovação da regularidade da representação da X BRASIL INTERNET LTDA. (CNPJ 16.954.565.0001- 48) em território brasileiro, bem como da licitude da constituição de seus novos advogados, DETERMINO, no prazo complementar de 5 (cinco) dias, a juntada aos autos:
(1) Das procurações societárias originais outorgadas pelas sócias Twitter International Unlimited Company e T.I. Brazil Holdings LLC à Sra. Rachel de Oliveira Villa Nova Conceição, devidamente notarizadas e consularizadas;
(2) Da Ficha de Breve Relato emitida pela JUNTA COMERCIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO comprovando a indicação da nova representante legal no Brasil."
Não ficou por aí. Sigamos com outro trecho da decisão:
"DETERMINO, ainda, que, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
(3) A RECEITA FEDERAL DO BRASIL e o BANCO CENTRAL DO BRASIL informem, nos termos da decisão de 16/9/2024, a atual situação legal da representação da X BRASIL INTERNET LTDA. (CNPJ 16.954.565.0001-48) no Brasil;
(4) Nos termos das decisões de 19/9/2024, a POLÍCIA FEDERAL e a ANATEL enviem relatórios sobre a continuidade de possibilidade de acesso da plataforma X, por meio de instrumentos tecnológicos, para fins do cálculo de eventual multa a ser aplicada;
(5) A SECRETARIA JUDICIÁRIA certifique:
(5.1) O valor total da multa devida pela então Representante Legal da empresa X BRASIL INTERNET LTDA (CNPJ 16.954.565.0001-48), à época do desrespeito às ordens judiciais, - Rachel de Oliveira Villa Nova Conceição;
(5.2) As ordens judiciais pendentes de cumprimento pela X BRASIL INTERNET LTDA (CNPJ 16.954.565.0001-48), tanto nestes autos como nos demais sob minha relatoria."
A X não vai voltar amanhã. Se e quando isso acontecer, não quer dizer que não possa ser derrubada novamente. Alguns colunistas do desaforo, cuja violência retórica compete com a ignorância sobre o ordenamento legal, tentaram ler na decisão de Alexandre o colapso da liberdade de expressão, como se a ameaça ao estado democrático e de direito emanasse da decisão do ministro, não da determinação de ignorar a lei e as ordens judiciais anunciada por um plutocrata e dos linchamentos que promove em sua rede.
CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
"Só ditaduras ou semiditaduras proíbem o funcionamento do X". A afirmação, por si, não diz nada sobre o que está em curso no Brasil e ainda contribui para erigir uma mentira falando uma verdade. Os regimes discricionários que barram a plataforma reprimem também a liberdade de organização política, que é absoluta por aqui, e cerceiam os direitos individuais, que estão amplamente garantidos no Artigo 5º da Constituição e são cláusula pétrea.
No comando da X, Musk atentou justamente contra alguns desses direitos. Ademais, o banditismo fantasiado de liberdade de expressão que campeia — não se resumindo, pois, à X — tem aviltado cotidianamente os valores da "Constituição cidadã".
A decisão tomada pelo Supremo nos informa, justamente, que, sendo o Brasil uma democracia, não há de se vergar às imposições daqueles que transformaram a "ágora da cidade exata, aberta e clara" numa tirania apátrida, que tem a ousadia de ameaçar o Poder Judiciário em vez de cumprir suas decisões.
Encerro reiterando — e já escrevi a respeito — que não tenho nenhum motivo, e ninguém tem, para acreditar na conversão de Musk aos ditames da lei. Parece-me que a pressa com que mudou de ideia é determinada mais pelo sentimento de certa orfandade que tem experimentado a extrema-direita no Brasil nesses 23 dias, destituída de sua principal máquina de espalhar mentiras, moer reputações e interferir na disputa eleitoral.
Ao escolher para as mesmas funções aqueles que foram destituídos há menos de um mês, entendo que o tirano quer restituir o estado de tensão anterior à decisão extrema — a suspensão de funcionamento —, que já era caracterizado por práticas notavelmente delinquentes. Ademais, o "cidadão Musk", tudo indica, continuará a usar a sua "liberdade de expressão" para atacar o Supremo e as instituições no Brasil.
Este par já é muito manjado, virou um clichê, mas é inescapável que se o evoque na linha final deste longuíssimo texto: a suspensão da X é um capítulo nacional da luta que a civilização trava contra a barbárie nas democracias.
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