Reinaldo Azevedo

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Opinião

Democracia só interessa às esquerdas? E Lira como babá permissiva de reaças

Venham cá: a "direita democrática" não é do tipo que fica indignada com a tentativa de golpe de estado havida no Brasil e com os horrores que o relatório da PF trouxe à Luz? Então democrática não é, sobrando-lhe apenas a condição de "direita" — e, nesse caso, seria preciso dizer o que isso significa. O silêncio sobre a intentona malsucedida opera necessariamente um deslocamento de posição, e os direitistas que, por intermédio da mudez, se mostram obsequiosos com o golpismo são joio e não trigo; ou são são extremistas de direita ou são seus sabujos.

Tomemos como exemplo o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O homem fez um discurso jacobino (alerta de ironia...) contra os franceses em defesa da carne brasileira. Os termos em que se manifestou o senhor Alexandre Bombard, CEO global do Carrefour, são mesmo inaceitáveis. A reação dos brasileiros, de diversos matizes ideológicos, foi correta. O deputado arrosta com o protecionismo francês, e isso parece bom, mas não com os planos homicidas tramados pela extrema-direita nativa. E isso é muito ruim.

"SUPERNANNY" DE GOLPISTAS
Não foi só por meio do silêncio que Lira resolveu se comportar como "supernanny" de golpistas, mas do tipo permissiva. Ele também discurso em tom elevado em defesa dos deputados Marcel Van Hatten (Novo-SC) e Cabo Gilberto Silva (PL-PB), que cometeram crimes contra a honra do delegado Fábio Shor, acusando-o, entre outras ofensas, de cometer crime. Van Hatten, por exemplo, disse que o delegado é "um abusador de autoridade"; "um covarde", que "conduz inquéritos fraudulentos", "um bandido", que pertence a uma "PF dominada pela bandidagem para proteger bandidos". Fez isso brandindo a foto do policial. Tudo devidamente publicado nas suas redes.

As manifestações estão na raiz da viralização nas redes de ataques ao delegado e à sua família, que tiveram expostos dados de sua vida privada. A campanha suja movida contra o delegado, na qual embarcou, por exemplo, o senador Marcos do Val, compõe parte do material que a X se negou a tirar do ar em agosto, o que resultado na sua suspensão em todo o território nacional.

IMUNIDADE PODE TUDO?
De saída, convém lembrar: a imunidade material garantida pelo Artigo 53 da Constituição -- "os deputados e senadores são invioláveis civil e penalmente por suas opiniões, palavras e votos" -- existe, já é jurisprudência firmada, para a garantia do exercício do mandato. Não confere ao parlamentar o direito de cometer crimes contra a honra de ninguém -- esta igualmente protegida pela Constituição. Também não lhes franqueia a licença para fazer a apologia do crime. Ou a imunidade, por absoluta que fosse, deveria abrigar, sem sanção penal, a defesa do terrorismo, do tráfico de drogas, da luta armada ou da pedofilia? É claro que Lira não tem resposta para essa indagação retórica.

Lira criticou duramente o indiciamento dos deputados e resolveu apelar à história para encarecer a sua indignação. Afirmou:
"Recordo aqui o caso do deputado Moreira Alves, que, durante o regime militar, foi alvo de retaliação justamente por sua coragem em defender a democracia e os direitos dos cidadãos. Sua cassação, baseada em discursos feitos na sagrada tribuna desta Casa, marcou um dos episódios mais sombrios de nossa história legislativa e serve como alerta constante para nós: aqueles que tentam restringir nossa Liberdade de expressão legislativa desconsideram os danos profundos que essa prática causa ao estado democrático de direito. O deputado Van Hatten e o deputado Gilberto Silva não são merecedores dos inquéritos r dos indiciamentos que foram feitos a esses deputados. É com grande preocupação que observamos recentes investidos da Polícia Federal para investigar parlamentares por discursos proferidos em tribuna. (...) Essa fala não é para polemizar; essa fala não é para afrontar; essa fala não é para desrespeitar; essa fala não é para intimidar. Essa falha é simplesmente para a gente lembrar: que nós temos, todos, limites".

Trata-se de uma fala de vários modos absurda. O homem que não disse uma miserável palavra contra a conspiração golpista — ABSOLUTAMENTE NADA! — tem o despropósito de associar duas das vozes mais virulentas da extrema-direita parlamentar a um discurso histórico de resistência à ditadura.

No dia 2 de setembro de 1968, Márcio Moreira Alves, criticando a ditadura, afirmou:
"(...) Vem aí o 7 de setembro.
As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile.
Esse boicote pode passar também, sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam-nas.
Recusassem aceitar aqueles que silenciam e, portanto, se acumpliciam. Discordar em silêncio pouco adianta. Necessário se torna agir contra os que abusam das Forças Armadas, falando e agindo em seu nome. Creia-me senhor presidente, que é possível resolver esta farsa, esta 'democratura', este falso impedimento pelo boicote. Enquanto não se pronunciarem os silenciosos, todo e qualquer contato entre os civis e militares devem cessar, porque só assim conseguiremos fazer com que este país volte à democracia.
(...)"

É uma ofensa à memória de Alves, a quantos lutaram pela redemocratização do país e aos fatos evocar aquele episódio para tentar endossar as posições dos dois deputados extremistas. Van Hatten foi uma das estrelas de um ato escancaradamente golpista ocorrido em pleno Senado no dia 30 de novembro de 2022. A turma pedia abertamente a intervenção das Forças Armadas para impedir a posse de Lula. E agora sabemos, em razão da investigação conduzida pela Polícia Federal, que a articulação em favor de um golpe passou por lugares bem mais perigosos. Alves queria o fim da ditadura. Van Hatten foi o Senado pedir uma ditadura.

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No dia 12 de dezembro de 1968, por 216 votos a 141, a Câmara recusou a licença para processar Alves. No dia seguinte, veio a edição do AI-5. É evidente que "o golpe dentro do golpe", que representou a medida, já vinha sendo planejada, e o discurso do deputado, cassado e exilado, serviu de mero pretexto.

A comparação também é estúpida. A PF recorre à lei, numa democracia, para indiciar dois parlamentares que cometeram crimes que não estão cobertos pela imunidade parlamentar. Em 1968, a ditadura quis cassar um deputado porque não suportou a crítica que fazia ao autoritarismo militar. Veio, então, o AI-5, que instituiu a ditadura arreganhada. No primeiro parágrafo, os tiranos diziam que procediam daquele modo para assegurar "a autêntica ordem democrática".

DEMOCRACIA SÓ INTERESSA ÀS ESQUERDAS?
É claro que Lira não é o único a silenciar na direita; trata-se apenas da figura mais graúda. Será que a democracia; o estado de direito; o respeito às regras do jogo; a segurança jurídica; os direitos humanos; a alternância de poder... Será que isso tudo se tornou um conjunto de valores a caracterizar os progressistas e os vários matizes da esquerda pluralista?

Sabem o que isso está a nos dizer, não é? Tivesse faltado realismo e bom senso aos setores armados que resistiram ao golpe, não teriam faltado adesões de expoentes da direita brasileira que, em tese ao menos, não abre mão do jogo democrático. Tomem como exemplo a liderança que está, vamos dizer, na estufa para substituir Bolsonaro como o nome da extrema-direita e dessa direita filogolpista: Tarcísio de Freitas. Esse não se contentou com o silêncio. Ele foi além de não condenar o golpismo: saiu em defesa de Jair Bolsonaro, cujas vinculações com a conspiração padecem de excesso de provas.

EPÍTOME DO ATRASO
Quando o presidente da Câmara, terceiro na linha sucessória, chefe de uma das duas Casas de um dos Parlamentos mais poderosos do mundo -- se não for o mais, dada a sem-vergonhice orçamentária -- se cala diante da estupefaciente conspiração golpista e se lança, com fala inflamada, em defesa de supostos direitos de conspiradores e criminosos, a gente tem noção do tamanho do nosso atraso político, de que Lira, então, é um epítome, um símbolo, uma fotografia.

Não custa lembrar que ele foi um dos entusiastas, em 2022, das duas PECs inconstitucionais, tramadas na boca da urna, com que Bolsonaro tentou virar o jogo eleitoral: a dos benefícios sociais e a dos combustíveis — nesse caso, a conta caiu no colo do governo Lula.

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A propósito: ao longo de quatro anos, quantos foram os arreganhos autoritários de Bolsonaro e ameaças explícitas à democracia e às próprias eleições, sem que se ouvisse um pio de Lira? Os que se calam diante do golpe estão a dizer que, no mínimo, poderiam ser fregueses de uma ditadura. "Ah, não aconteceria nada; nossas instituições são sólidas..." Isso é conversa de preguiçosos. Se Freire Gomes, então comandante do Exército, tivesse topado, o golpe teria acontecido. Não teria como se sustentar, é fato, mas quanto a aventura homicida nos teria custado?

PARA ENCERRAR
Vamos ver como se movem Lira e outros patriotas do silêncio... Tenho para mim que a referência a Márcio Moreira Alves lhe foi soprada aos ouvidos pelo a cada dia mais reacionário senador Rogério Marinho (PL-RN). O episódio remete a seu avô, Djalma Marinho, um apoiador do golpe de 1964, mas um, digamos, "legalista de um regime golpista".

No dia 11 de dezembro de 1968, Djalma renunciou à Presidência da CCJ da Câmara porque a ditadura conseguiu substituir, na Comissão, deputados da Arena contrários à cassação de Moreira Alves por deputados favoráveis. Embora ele fosse um "homem do regime", defendia a independência do Parlamento. No discurso de renúncia, citou o poeta Calderón de la Barca: "Ao rei, tudo, menos a honra". Seu neto vive acusando a suposta "ditadura do Judiciário" e pede anistia para golpistas, constituindo-se numa farsa do avô porque se identifica com a turma "golpista de um regime legalista".

Cadê a voz da direita democrática contra o golpe?

Cadê a direita democrática?

Que gente é essa que entrega tudo ao tirano, começando pela honra?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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