Reinaldo Azevedo

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Opinião

Golpe: o general da PF e o do STF. Se pressionaram militar, preventiva já!

O general Marco Antônio Freire Gomes, ex-comandante do Exército, depôs nesta segunda como testemunha na ação penal sobre a tramoia golpista. Foi um dos nomes indicados pela Procuradoria Geral da República. Algo estranho pode ter acontecido entre os depoimentos prestados à PF, corroborado por provas, e o que tentou fazer ontem, o que motivou uma advertência do ministro Alexandre de Moraes: técnica, necessária, pontual. À Polícia, o militar da reserva tinha sido inequívoco sobre a investida de Jair Bolsonaro contra o resultado da eleição de 2022. Ontem, tentou flertar com a tese de que o ex-presidente buscava, inicialmente ao menos, uma saída constitucional para ignorar a vontade expressa nas urnas, como se isso fosse possível. Ao perceber que se encalacrava, recuou. Antes que avance, cumpre lembrar algumas disposições do Código de Processo Penal.

- Artigo 203: "A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado (...) e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade.":
- Artigo 206: "A testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor (...)";
- Artigo 342: incorre em crime de falso testemunho quem fizer "afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade".

Nota: embora tenha o dever da verdade, a testemunha pode silenciar no caso em que a resposta levaria à autoincriminação — e só nesse caso. A garantia nasce de uma interpretação extensiva dada pelo Supremo ao Inciso LXIII do Artigo 5º, a saber: "O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado". Se o preso tem tal licença, quem não está encarcerado também tem. Assim, a testemunha pode silenciar, mas tão somente diante do risco de auto-incriminação.

DEPOIMENTO À PF
No dia 2 de março do ano passado, Freire Gomes prestou depoimento à PF na condição de testemunha. Transcrevo o que vai na página 331 do Inquérito da PF:
"INDAGADO se nas reuniões que participou/presenciou no Palácio da Alvorada, após o 2° turno das eleições presidenciais, o então presidente JAIR BOLSONARO apresentava a hipótese de utilização da Garantia da Lei da Ordem - GLO e/ou outros institutos jurídicos mais complexos, como a decretação do Estado de Defesa, Estado de Sítio, Intervenção Federal para solucionar uma possível "crise institucional'', respondeu QUE se recorda de ter participado de reuniões no Palácio do Alvorada, após o segundo turno das eleições, em que o então Presidente da República JAIR BOLSONARO apresentou hipóteses de utilização de institutos jurídicos como GLO, ESTADO DE DEFESA e ESTADO DE SÍTIO em relação ao processo eleitoral; QUE sempre deixou evidenciado ao então Presidente da República JAIR BOLSONARO, que o Exército não participaria na implementação desses institutos jurídicos visando reverter o processo eleitoral;"

Na página 332, trata-se especificamente da minuta golpista:
"INDAGADO sobre quando e como se deu a apresentação da minuta de decreto com conteúdo que previa uma ruptura institucional, mantendo o então Presidente JAIR BOLSONARO no poder, respondeu QUE foi convocado pelo então Presidente da República JAIR BOLSONARO, por meio do então Ministro da Defesa PAULO SÉRGIO, a comparecer no dia 07/12/2022, para uma reunião no Palácio do Alvorada; QUE não foi informado ao depoente qual seria a pauta da reunião; QUE a reunião correu na biblioteca do Palácio da Alvorada; QUE estavam presentes o depoente, o então Ministro da Defesa General PAULO SERGIO, o então Comandante da Marinha Almirante GARNIER e, possivelmente, o então Assessor para Assuntos Internacionais FILIPE MARTINS; QUE na reunião o assessor leu os "considerandos", que seriam os fundamentos jurídicos da referida minuta de decreto;"

Vamos à Página 355, que trata da atuação do almirante Almir Garnier, então comandante da Marinha:
"Em termo de depoimento, o General FREIRE GOMES relatou que, em outra reunião no palácio do Alvorada, com os comandantes das Forças e o Ministro da Defesa, JAIR BOLSONARO apresentou uma versão do Documento com a Decretação do Estado de Defesa e a criação da Comissão de Regularidade Eleitoral para 'apurar a conformidade e legalidade do processo eleitoral'. Nessa reunião, o depoente relatou que, juntamente com o Brigadeiro BAPTISTA JUNIOR, afirmaram suas posições contrárias ao conteúdo do Decreto, mas que o Almirante ALMIR GARNIER se colocou à disposição do então presidente JAIR BOLSONARO."

SEM SUPORTE JURÍDICO
Na página 356:
"QUE o depoente e o Brigadeiro BAPTISTA JUNIOR afirmaram de forma contundente suas posições contrarias ao conteúdo exposto; QUE não teria suporte jurídico para tomar qualquer atitude; QUE acredita, pelo que se recorda, que o ALMIRANTE GARNIER teria se colocado à disposição do Presidente da República".

Posteriormente, no dia 14/12/202246, ocorreu uma nova reunião no ministério da Defesa, com os comandantes das três forças, em que o ministro da Defesa, General PAULO SÉRGIO, novamente apresentou o documento, sendo um Decreto mais abrangente do que a apresentada pelo então Presidente JAIR BOLSONARO, mas da mesma forma decretava o Estado de Defesa e instituía a criação da Comissão de Regularidade Eleitoral para 'apurar a conformidade e legalidade do processo eleitoral'."

A polícia apresentou ao general a minuta golpista apreendida na casa de Anderson Torres ainda em 10 de janeiro de 2023 e indagou se ele conhecia o documento. Vamos à página 359:
"Ao ler o referido documento, o General FREIRE GOMES confirmou que o conteúdo da minuta de Decreto apreendida na residência do ex-ministro da Justiça ANDERSON TORRES era o mesmo das minutas apresentadas nas reuniões no palácio da Alvorada pelo Presidente da República JAIR BOLSONARO e no ministério da Defesa, pelo General PAULO SÉRGIO, no dia 14/12/2022. INDAGADO se o conteúdo apresentado neste momento ao depoente foi apresentado na reunião ocorrida após o dia 07 de dezembro de 2022 com o então Presidente da República JAIR BOLSONARO e posteriormente, de uma forma mais geral, com o Ministro da Defesa General PAULO SÉRGIO, respondeu QUE sim; QUE confirma que o conteúdo da minuta decreto ora apresentado foi exposto ao declarante nas referidas reuniões; QUE ressalta que deixou evidenciado ao então Presidente da República JAIR BOLSONARO e ao então Ministro da Defesa General PAULO SÉRGIO, que o Exército NÃO aceitaria qualquer ato de ruptura institucional."

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DIFAMAÇÃO
Vamos à página 420 e 421, ainda com Freire Gomes:
"Em termo de depoimento, FREIRE GOMES confirmou que passou a receber pressões para anuir a uma possível ruptura institucional, recebendo ataques pelas mídias sociais, principalmente pela pessoa de PAULO FIGUEIREDO.
INDAGADO se passou a receber pressões para anuir a uma possível ruptura institucional, respondeu QUE sim; (...) INDAGADO se chegou a receber as mensagens de texto abaixo identificadas pela Polícia Federal no dia 14/12/2022, repassada pelo militar da reserva AILTON GONÇALVES MORAES BARROS ou por outra pessoa, respondeu QUE recebia ataques pelas mídias sociais, principalmente por meio da pessoa de PAULO FIGUEIREDO; QUE tomou conhecimento dos ataques pessoais comandados pelo General BRAGA NETTO à sua pessoa e familiares, quando da divulgação da investigação policial;

FREIRE GOMES também ratificou que os ataques do General da reserva BRAGA NETTO se deram pelo fato de ter se negado a anuir com o plano de ruptura institucional. (...) INDAGADO se o trecho da mensagem encaminhada pelo GENERAL BRAGA NETTO no qual afirma: ''a culpa pelo que está acontecendo e acontecerá é do GEN FREIRE GOMES. Omissão e indecisão não cabem a um combatente'', se deve ao fato ao fato de o DEPOENTE, na condição de Comandante do Exército, ter se negado a anuir com o plano de ruptura institucional, respondeu QUE sim; INDAGADO se o trecho da mensagem encaminhada pelo GENERAL BRAGA NETTO no qual refere-se expressamente ao DEPOENTE: ''Oferece a cabeça dele. Cagão', são consequências das ameaças e pressões que o DEPOENTE sofreu por não anuir com o plano de Golpe de Estado, respondeu QUE sim;
O depoente também confirmou que sempre havia manifestações em frente à sua residência."

VAMOS VOLTAR
Selecionei trechos dos depoimentos de Freire Gomes à PF em que se evidenciam as várias oportunidades em que se falava abertamente de golpe de estado, ainda que não se pronunciasse tal nome --, com a resistência do próprio Freire Gomes e de Baptista Jr., então comandante da Aeronáutica.

Nesta segunda, Freire Gomes resolveu apelar a uma retórica, é preciso que se diga, mais próxima da conversa mole de Bolsonaro. Disse:
"Foram só lidos alguns considerandos e, nesses considerandos, constavam aspectos que remetiam a uma possível GLO, Estado de Defesa ou de Sítio. Mas muito superficial. O presidente apresentou apenas como informação e nos disse que era apenas para que nós soubéssemos que estava desenvolvendo um estudo sobre o assunto. Não nos demandou qualquer opinião sobre o assunto. (...) Ele apresentou esse apanhado de considerandos, todos eles embasados em aspectos jurídicos, dentro da Constituição. Por isso não nos causou nenhuma espécie, porque não havia nada que chamasse atenção, algo diferente disso."

Parte do que o general havia dito à PF está transcrito acima. O que aconteceu entre um depoimento e outro?

Prosseguiu:
"Eu alertei ao senhor presidente, com toda a educação, dentro de um aspecto bastante cordial, de que as medidas que eventualmente ele quisesse tomar, ele deveria atentar para os diversos aspectos, desde os apoios, seja nacional ou internacionalmente, desde a questão do próprio Congresso, da parte jurídica, e que tudo isso poderia desencadear aí numa situação em que ele, se não tivesse esses apoios e não jogasse efetivamente o processo dentro dos aspectos eminentemente jurídicos, iria ter um problema sério, podia inclusive ser implicado juridicamente nisso."

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Freire Gomes negou ainda conteúdo do depoimento de Baptista Jr., segundo quem o então comandante do Exército teria dito a Bolsonaro que iria prendê-lo se insistisse no plano tresloucado.

Tentou também livrar a cara de Almir Garnier:
"O almirante Garnier, acho que ele também foi surpreendido por aquilo tudo ali. Não me lembro dele ter dito que...Ele apenas demonstrou, vamos dizer assim, o respeito ao comandante em chefe das Forças Armadas. Não interpretei como qualquer tipo de conluio. "

A INTERVENÇÃO DE ALEXANDRE DE MORAES
Volto ao começo. Freire Gomes depôs como testemunha à PF e ao STF. A única salvaguarda de que dispõe nessa condição é não se incriminar. Mas não lhe é dado silenciar por alguma outra razão, mentir ou omitir informações. Coube ao ministro-relator lembrar:
"A testemunha não pode omitir o que sabe. Eu vou aqui dar uma chance à testemunha de falar a verdade. Se mentiu na polícia, tem que dizer que mentiu na polícia. (...) Comandante, ou o senhor falseou a verdade na polícia ou está falseando a verdade aqui."

O general acabou confirmando o óbvio — até porque as provas materiais existem. Os "documentos" do golpe lhe foram apresentados. E inexiste a hipótese de que um governante possa desrespeitar o resultado da eleição pretextando óbices constitucionais.

Acabou admitindo:
"No último contato que nós tivemos com esse documento, que nós tomamos conhecimento, fazia referência, sim, de alguma coisa com relação à prisão de autoridade. Acho que, no caso, era o ministro Alexandre de Moraes."

ENCERRO
Ninguém precisa adivinhar o assédio a que Freire Gomes está sujeito. Trata-se de um dado da equação. Cumpre lembrar: qualquer eventual pressão de um investigado ou réu a testemunhas constitui uma óbvia conspurcação da instrução criminal, uma das razões para que se decrete a prisão preventiva de quem assim proceder, conforme dispõe o Artigo 312 do Código de Processo Penal.

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A testemunha, por seu turno, que buscar obstruir a investigação ou prestar falso testemunho responde pelas escolhas que fizer.

As defesas, claro!, vão tentar explorar a conversa inicialmente frouxa do general. Depois ele acabou se lembrando do que ele próprio dissera à PF.

Não sei se perceberam: em qualquer das versões da minuta golpista, debatia-se nas reuniões como Lula não tomaria posse e como o TSE seria destituído das suas funções. E com a prisão de Alexandre ao menos...

Essa era a conversa com os nobilíssimos comandantes militares. Quanto o golpe descia aos porões, aí já se falava do assassinato de Lula, Alckmin e Moraes e de, como é mesmo?, "matar meio mundo".

Sim, uma eventual testemunha sempre pode decidir dividir a Papuda com Bolsonaro. Aí vai ficar lá cantando aquele trechinho de "Pessoa Nefasta", de Gil: "Basta/ Ver-te em teu mundo interno/ Pra sacar teu inferno/Teu inferno é aqui".

Uma questão de escolha.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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