Procuradoria vê omissão do Incra na reforma agrária do governo Bolsonaro
A PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão) solicitou à Procuradoria da República em Mato Grosso que abra uma investigação sobre a Superintendência do Incra no estado, que estaria retardando a destinação de terras públicas para o programa de reforma agrária. Em ofícios obtidos pela Procuradoria, a superintendência argumenta que segue "as diretrizes trazidas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro".
Um dos exemplos em Mato Grosso, diz a Procuradoria, é a Fazenda Araúna, no município de Novo Mundo. Por meio de uma ação judicial, a União buscou a retomada da propriedade, que tem 14,7 mil hectares. A sentença judicial reconheceu a propriedade da União e deferiu a tutela provisória para determinar a desocupação da área no prazo de 60 dias. A decisão foi confirmada em instância superior do Judiciário.
"Apesar disso", diz a Procuradoria, a superintendência do Incra em Mato Grosso "teria invocado a orientação da presidência da autarquia para que não sejam adotadas medidas para a obtenção de terras, ainda que públicas e federais, e para afirmar que não adotaria qualquer medida para a criação de projetos de assentamentos na região".
O trabalho do MPF é conectado a uma auditoria realizada pelo TCU (Tribunal de Contas da União) aprovada em plenário do tribunal no último dia 1º de abril. O levantamento concluiu, segundo o MPF, que "a paralisação das operações do Programa Terra Legal em 2019 leva a situação fundiária da Amazônia Legal a cenários semelhantes aos dos anos 80 [...]: 'intensificando um ambiente de instabilidade jurídica, propiciando a grilagem de terras, o acirramento dos conflitos agrários e o avanço do desmatamento'".
O TCU constatou ainda "a diminuição de quase 80% do rendimento operacional do programa entre 2014 e 2017". O programa chegou a praticamente zero no número de títulos emitidos no primeiro semestre do governo Bolsonaro, em 2019, segundo o MPF.
Segundo a auditoria, "os resultados do Programa Terra Legal não têm sido suficientes para tratar os problemas de instabilidade jurídica, grilagem de terras e avanço do desmatamento na região da Amazônia Legal", bem como "para a promoção da função social da terra nessa região".
No Brasil, o programa emitiu 30,7 mil títulos, "número muito baixo se comparado à meta de 140 mil". De acordo com o MPF, "caso seja mantida essa média, serão necessários mais de 35 anos para a emissão dos títulos pretendidos". Sobre as metas estabelecidas de 2014 a 2019, apenas Amapá e Tocantins já teriam cumprido a meta.
O Programa Terra Legal foi criado em 2009 com o objetivo de a regularização fundiária de terras públicas federais sem destinação na Amazônia, observada a metragem máxima de 2,5 mil hectares, como definido por uma lei de 2017. Antes da Medida Provisória 870, assinada por Bolsonaro no seu primeiro dia de governo, em 2019, o programa era tocado pela Serfal (Subsecretaria Extraordinária de Regularização Fundiária na Amazônia Legal), vinculada à Casa Civil da Presidência da República. Depois da MP, os órgãos foram extintos e o programa foi transferido para o Incra.
O TCU acompanha a execução do programa por meio de uma ampla auditoria, dado o volume de recursos envolvidos, cerca de R$ 58,6 bilhões desde 2009, em valores não atualizados.
No dia 6 do mesmo mês, o TCU enviou as conclusões de sua auditoria à PGR (Procuradoria Geral da República), que as repassou para a 4ª Câmara de Coordenação e Revisão, que por fim enviou cópia do expediente para o MPF em São João de Meriti (RJ), onde atua o coordenador do Grupo de Trabalho Reforma Agrária dentro do MPF, Julio José Araujo Júnior. Além da auditoria, o MPF partiu de um ofício encaminhado pelo gabinete da deputada federal Rosa Neide (PT-MT).
A partir de um relatório de Araujo, a procuradora federal dos direitos do cidadão, Deborah Duprat, oficiou o MPF de Mato Grosso a fim de instaurar um procedimento com o objetivo de investigar, entre outros pontos, a "adoção das providências cabíveis quanto à omissão na efetivação de políticas de reforma agrária e para apurar eventuais atos de improbidade administrativa".
O procurador Araujo mencionou que, na auditoria do TCU, foi constatada "a ausência de medidas para a retomada de áreas cujos processos foram indeferidos". No Brasil todo, foram 887 mil hectares na mesma situação, com o valor estimado de mais de R$ 2,4 bilhões. "Os ocupantes irregulares continuam nessas ocupações, em ofensa ao disposto" nas leis, diz o procurador. "A postura da Superintendência do INCRA no Mato Grosso se enquadra justamente nesse cenário de renúncia de receita e não destinação constitucional a terras públicas", escreveu Araujo.
'Diretrizes'
A Procuradoria reproduz um ofício de novembro de 2019 da Superintendência do Incra em Mato Grosso, segundo o qual "há a orientação expressa do Incra/Sede em Brasília para que não sejam adotadas nenhuma medida para obtenção de terras mesmo que oriundas de terras públicas federais, razão pela qual informo que esta Superintendência Regional não irá adotar nenhuma medida para a criação de Projetos de Assentamentos na região, até que perdure o Memorando 01/2019/Sede/Incra, de 27 de março de 2019,"
Em outro momento, a Superintendência enviou um ofício para a Diretoria de Ordenamento da Estrutura Fundiária do Incra para pedir a paralisação de todos os processos judiciais sobre destinação de terras públicas até nova manifestação de um setor do órgão, "haja visto que compete a câmara técnica destinar as terras públicas após consulta aos órgãos da administração".
O ofício menciona, nas justificativas, "as diretrizes trazidas pelo governo do presidente Jair Messias Bolsonaro com relação a Política Agrária Nacional, especialmente no que diz respeito a questão da regularização fundiária de terras públicas federais". Citou ainda "a informação de que existem mais lotes disponíveis para reforma agrária do que clientes para ocupá-los" e o "contingenciamento dos recursos financeiros de forma geral para a manutenção do Incra em todo país".
Para o Ministério Público Federal, "a abordagem sucinta do problema, sem atentar para os deveres do Incra na reforma agrária e na política agrícola, indica, em tese, uma omissão deliberada no dever de garantir a proteção daquele patrimônio, a ser investigada pelos órgãos com atribuição em combate à corrupção do MPF".
'Zero título'
A Procuradoria apontou que o acórdão do TCU "demonstrou o mau funcionamento do Programa Terra Legal, o descumprimento de preceitos legais e constitucionais e os impactos que isso acarreta sobre a crescente grilagem de terra na Amazônia Legal e o aumento do desmatamento da floresta". O TCU apontou, a respeito de Mato Grosso, supostas irregularidades em processos de aquisição de terras em Guiratinga, Novo Mundo e Rosário Oeste.
A auditoria do TCU identificou "a) falta de providências para a recuperação de mais de R$ 1 bilhão em áreas irregularmente ocupadas identificadas nos sistemas de informação do programa; b) ausência de providências para a retomada e destinação de mais de R$ 2,4 bilhões em imóveis rurais do programa com irregularidades, cujos processos foram indeferidos; c) 95% das áreas selecionadas como amostra não cumprem as cláusulas resolutivas; d) diminuição de quase 80% do rendimento operacional do programa entre 2014 e 2017, chegando a praticamente zero títulos emitidos no primeiro semestre de 2019".
De acordo com o TCU, "o volume de recursos fiscalizados corresponde a R$ 58,6 bilhões, referentes a terras que poderiam ter sido regularizadas e destinadas a uma afetação prevista em lei. O tribunal ressalta que houve a emissão de 28.331 títulos até 31/12/2017, o que equivale a uma área de 2.057.119,95 de hectares destinados".
Segundo o TCU, há parcelas sem condições de regularização, o que foi constatado por meio de geosensoriamento remoto. No caso do Mato Grosso, há mais de 30 áreas nessa situação, localizadas nos Municípios de Porto Alegre do Norte, General Carneiro, Cuiabá, Guarantã do Norte, Novo Mundo, Colíder e Tangará da Serra".
'Quebra-cabeça'
O coordenador do Grupo de Trabalho Reforma Agrária narrou ainda, em seu relatório, uma reunião mantida pelo grupo com a presidência do Incra em 11 de setembro de 2019. "O GT Reforma Agrária expôs a sua preocupação com o cenário de desistência de desapropriações e de não aproveitamento do estoque de terras públicas para a reforma agrária", escreveu Araujo.
"O presidente [do Incra] informou que a Serfal deixou de existir [no governo Bolsonaro], que o órgão foi totalmente desmontado e colocado para dentro do Incra. Em linha gerais, ocorreu um desmonte inicial, foi preciso montar o quebra-cabeça. Ainda há um problema em relação à tecnologia, porque não é possível migrar para o Incra os dados que tinha na Serfal, por ser tecnicamente incompatível. A procuradora federal [do Incra, vinculada à AGU] reforçou que houve um desmonte dessa competência da noite pro dia. Vários contratos temporários deixaram de ser prorrogados. O Incra recebeu o Terra Legal praticamente só com os servidores do próprio Incra que antes estavam na Sefal", descreveu o relatório.
Em setembro de 2019, o presidente do Incra ainda era o general reformado João Carlos Jesus Corrêa. Ele foi substituído, em outubro passado, pelo economista Geraldo Melo Filho, que é filho do ex-governador e ex-senador pelo Rio Grande do Norte Geraldo Melo.
O Grupo de Trabalho já enviou ao governo Bolsonaro, desde 2019, quatro recomendações sobre o tema da reforma agrária, sendo duas sobre "interlocução do Incra com movimentos sociais", uma sobre impossibilidade de desistência de desapropriações e outra sobre regularização do Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária).
O GT também produziu quatro notas técnicas sobre o assunto. Elas trouxeram advertências sobre "violação aos princípios constitucionais da igualdade, da função social da propriedade e do respeito ao meio ambiente"; redução das "exigências relativas à função social da propriedade"; inconstitucionalidades da Medida Provisória nº 910/2019, que fala da regularização fundiária e urbana e novas observações apontamentos sobre a Medida Provisória 910/2019 a propósito do acórdão do TCU".
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