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Rubens Valente

Citado em dossiê do governo se diz perplexo e pede investigação

O ex-secretário de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, discursa durante criação da Comissão Arns - ALICE VERGUEIRO/ESTADÃO CONTEÚDO
O ex-secretário de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, discursa durante criação da Comissão Arns Imagem: ALICE VERGUEIRO/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

24/07/2020 16h47

Um dos "alvos" de um dossiê produzido pelo Ministério da Justiça em junho sobre o movimento antifascismo, o professor universitário e defensor dos direitos humanos Paulo Sérgio Pinheiro, 76, se disse "absolutamente perplexo" e pediu uma ampla investigação, tanto no Ministério Público quanto no Congresso Nacional, sobre a origem e as circunstâncias do levantamento.

Com um longo currículo em cargos e atividades ligadas à defesa dos direitos humanos, Pinheiro comparou o dossiê aos produzidos pela ditadura militar (1964-1985) contra seus opositores.

O levantamento foi feito pela Seopi (Secretaria de Operações Integradas), uma unidade pouco conhecida do MJ que tem entre suas atribuições "estimular e induzir a investigação de infrações penais, de maneira integrada e uniforme com as polícias federal e civis", segundo o decreto do presidente Jair Bolsonaro de 1º de janeiro de 2019. Pinheiro aparece, com outras três pessoas do meio acadêmico, como um dos "formadores de opinião" do movimento dos policiais antifascistas. Um anexo traz nomes de 579 agentes da segurança pública.

"Numa democracia como a que vivemos, uma investigação tendo alvos precisos como essa é algo totalmente inaceitável. De uma certa maneira seria recuarmos às práticas da ditadura militar. Os governos da ditadura militar também tinham fichas pessoais no mesmo formato", disse Pinheiro.

Doutor em ciência política pela Universidade de Paris, na França, Pinheiro foi conselheiro e presidente da CNV (Comissão Nacional da Verdade), que investigou crimes cometidos contra os direitos humanos durante a ditadura, foi secretário nacional dos direitos humanos durante o governo Fernando Henrique Cardoso e desde 2011 é o presidente da comissão independente internacional da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre a República Árabe da Síria, com sede em Genebra, nomeado pelo conselho de direitos humanos da ONU. Ele também é membro da Comissão Arns de direitos humanos, criada no ano passado.

"Mais de 30 depois do final da ditadura, agora temos o Executivo voltando a essas práticas totalmente ilegais e inócuas. Abusivas. Acho totalmente ilegal e totalmente inútil. As coisas que eu falo, que eu escrevo, são públicas. O contribuinte brasileiro está pagando esses funcionários para fazer uma prática ilegal e absolutamente inútil. Qual o interesse do governo em ter esses dossiês? Estou absolutamente perplexo", disse Pinheiro.

O professor se disse preocupado com o uso do dossiê para uma perseguição contra servidores públicos da área de segurança. Mencionou que, na ditadura, muitos servidores também foram preteridos em suas carreiras e cassados por suas convicções políticas. Ele disse que não tem relações pessoais com o movimento dos policiais antifascistas e não sabe dizer exatamente por que o seu nome aparece como "formador de opinião" do grupo.

"O Executivo não controla as mentes e corações de seus funcionários. É um escândalo, é um absurdo. Eu me sentiria muito mal se soubesse que esses funcionários estejam sendo vigiados e provavelmente sancionados porque eles, em tese, me consideram fonte de referência. É grotesco, totalmente absurdo."

'As pautas do movimento são todas públicas'

Outro citado no dossiê do Ministério da Justiça como "formador de opinião" dos policiais antifascistas é o bacharel em ciências políticas da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Alex Agra Ramos, 21. Ele também pediu a abertura de uma investigação, mas se disse descrente de que possa ir a fundo.

"Tem que ser aberto um processo investigativo. Para saber se não para nesse documento, deve ter muito mais coisas. O papel da investigação nesse momento seria tornar transparente as razões do governo, qual a razão, o que o governo teme. Para a transparência histórica de como foi o processo. Mas ainda assim fico muito descrente sobre os resultados", disse Ramos.

Diferentemente de Pinheiro, que não tinha relações diretas com o movimento dos policiais antifascistas, Alex Ramos explicou que se aproximou do movimento há cerca de três anos, participou do primeiro congresso dos policiais antifascistas, produz textos e participa de debates e lives na internet sobre o tema da segurança pública. Ramos se declara militante marxista.

"Minhas teses são sobre segurança pública. Tenho um livro que vai ser publicado em agosto sobre o tema. O que eu defendo nos seminários e congressos é essa perspectiva que coloco, de natureza marxista, e busco sempre trazer os policiais para a discussão, colocar essas contradições internas da própria organização da qual fazem parte. Primeiro aprendi muito com eles sobre essa situação e depois teorizei a respeito dela. Trabalhei para o sindicato dos policiais federais em 2017 na organização de um seminário na UFBA. Tenho amizade com muitos policiais à esquerda de várias instituições", explicou Ramos.

O bacharel em ciências políticas considerou absurda a vinculação de um "manual terrorista" no dossiê aos policiais antifascistas. "Essa ameaça [de terrorismo] não existe. Se você buscar as pautas e os programas do movimento antifascismo, são todas públicas, é mais uma pauta de discussão sobre o avanço conservador contra as instituições de segurança. A intenção do governo é transformar os policiais antifascistas em um movimento de oposição, deslocar da esfera política para a esfera militar. É querer transformá-los em inimigos da nação. Se o governo se prestasse a conhecer o mínimo do movimento dos policiais antifascistas veria que eles estão no espectro da reforma das instituições."

Para Ramos, "embora exista gente como eu, marxista, que busca tensionar, levar a pauta revolucionária, é sempre uma pauta pacífica, contra o fascismo". "O governo está perdendo muito tempo monitorando a opinião dos policiais e gastando pouquíssimo tempo para fazer uma 'accountability' [controle e fiscalização] sobre o resultado das investigações, a efetividade da polícia, os índices de criminalidade."

O bacharel de ciências políticas disse que, apesar de grave, considera a confecção de um dossiê com seu próprio nome um ato natural. "Dada a natureza do governo, um movimento de monitoramento e forças de oposição como esse é até natural. Lembro que em 1964, dentro da adoutrina de segurança nacional, havia a perspectiva de repressão ao público interno, aqueles servidores que estavam tensionando dentro do aparato repressivo. Tanto policiais quanto militares foram reprimidos pela ditadura. Sem surpresas por parte do governo. Enquanto militante e abertamente marxista não vejo com grandes preocupações esse monitoramento. Acho até uma honra que o governo esteja me monitorando."