Topo

Rubens Valente

Opinião: Ataque de Heleno expõe ignorância sobre o movimento indígena

General Heleno dá entrevista em protesto contra STF e Congresso - Vinícius Santa Rosa/Metrópole
General Heleno dá entrevista em protesto contra STF e Congresso Imagem: Vinícius Santa Rosa/Metrópole

Colunista do UOL

22/09/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Artigo analisa acusações do ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), Augusto Heleno, contra a principal organização indígena do país
  • A Articulação dos Povos Indígenas foi criada em 2004 e fez várias críticas a diferentes governos desde então, incluindo os de Lula e Dilma

Há 16 anos, em pleno governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o movimento indígena que existia desde os anos 80 percebeu que deveria criar uma nova instância, uma coordenação nacional que aglutinasse as principais organizações indígenas regionais e funcionasse como mais um instrumento de pressão em Brasília sobre o governo federal, o Legislativo e o Judiciário em busca de seus direitos.

Na pauta de reivindicações se destacava a demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, que vinha sendo, na visão dos indígenas, postergada desde a posse de Lula, em janeiro de 2003. Em 2004, cerca de 250 indígenas acamparam em frente ao Ministério da Justiça para cobrar a assinatura do ato da demarcação, que só ocorreria um ano depois, em 2005, e que depois seria judicializado por quatro anos no STF.

Ouvido em 2004, o indigenista Egon Heck, do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), disse que o acampamento foi "a forma que os povos indígenas encontraram para dizer que o governo Lula não está cumprindo o que prometeu" e serviu também para "mostrar a verdade diante das mentiras" inventadas por políticos anti-indígenas, principalmente da "bancada ruralista que está mais forte no atual governo".

Em 2005, durante a manifestação no gramado da Esplanada dos Ministérios, já com o nome de ATL (Acampamento Terra Livre), que passaria a ocorrer anualmente em Brasília no mês de abril, os indígenas anunciaram a criação da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). Trata-se de uma coalizão, uma expressão política sem personalidade jurídica, que reúne as maiores organizações indígenas do país, como a Coiab, da Amazônia, a Apoinme, do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, e o Conselho Terena e a Aty Guasu, do Mato Grosso do Sul, entre outras.

A partir de então, a APIB protagonizou vários momentos de cobranças e pressões sobre os governos Lula (2003-2010), Dilma (2011-2016) e Michel Temer (2016-2018), por meio de protestos, entrevistas, manifestações, notas e denúncias inclusive internacionais, na OEA (Organização dos Estados Americanos) e na ONU (Organização das Nações Unidas), contra o governo brasileiro.

A relação da APIB com os governos do PT foi marcada por momentos de tensão. Quando o governo decidiu construir a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, definida no governo Lula em 2005 e concluída no de Dilma em 2016, a obra foi denunciada em todos os fóruns nacionais e internacionais pelo movimento indígena e pelas principais lideranças indígenas do país, como o próprio cacique kayapó Raoni Metuktire, agora um alvo frequente de acusações de Bolsonaro. Exatamente como faria em 2019, Raoni esteve em 2011 na França para angariar apoio à causa contra a usina. O cantor inglês Sting, seu amigo de muitos anos, e o cineasta de Hollywood James Cameron foram alguns dos apoiadores do cacique.

Em 2012, durante o primeiro mandato de Dilma, a APIB denunciou o Brasil à ONU (Organização das Nações Unidas) ao solicitar um acompanhamento rigoroso da situação dos direitos indígenas no país. A carta da APIB entregue em Genebra, na Suíça, dizia que o "o governo federal tem publicado nos últimos dois anos uma série de decretos e portarias que tem o propósito de inviabilizar a demarcação de terras reivindicadas pelos povos indígenas e a abertura dos territórios e seus recursos naturais à exploração descontrolada por parte de empresas nacionais e do capital financeiro especulativo transnacional".

Quinze anos depois da fundação da APIB e nove anos depois da denúncia à ONU contra um governo petista, eis que o ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) do presidente Jair Bolsonaro, o general da reserva Augusto Heleno, em uma sequência de três tuítes na última sexta-feira (18), acusa a APIB de suposto "crime de lesa-pátria", argumenta que "a administração da organização é de brasileiros, filiados a partidos de esquerda" e que ela trabalha junto com outros sites na internet "24 horas por dia para manchar nossa imagem no exterior".

O ataque mais direto que Heleno já fez a uma organização indígena desde o início do governo Bolsonaro só revela, excluindo a hipótese de má-fé, uma profunda ignorância sobre a formação e a trajetória do movimento indígena.

Desinformação

"A Emergency APIB é presidida pela indígena Sônia Guajajara, militante do PSOL e ligada ao ator Leonardo DiCaprio, crítico ferrenho do nosso país", escreveu o general em seu costumeiro tom conspiratório. Inexiste o cargo de "presidente" da APIB e Sônia é uma das coordenadoras da articulação. Como ela, várias outras lideranças, de diferentes estados e regiões do país, são responsáveis pelos rumos da Articulação.

Para encontrar alguma coerência com a história do Brasil e da APIB, a tese de Heleno teria que saltar toda a série de altos e baixos, os avanços e recuos, que o movimento indígena viveu na relação com o governo central nos últimos 35 anos de redemocratização. Foi um relacionamento extremamente difícil, para dizer o mínimo, fosse qual fosse o governo de plantão.

Não se trata, nem é a intenção aqui, de fazer uma falsa equivalência. Não é possível nem começar uma comparação do governo Bolsonaro com os seus antecessores. Vejamos, como mero indicativo, o número de terras indígenas demarcadas. FHC, nos oito anos dos seus dois mandatos, homologou 145 terras indígenas. Lula, também em dois mandatos, 87 terras. Dilma, em seis anos, 21. A partir daí, a coisa degringolou. Temer, de 2016 a 2018, nenhuma terra homologada. Também com zero demarcação, em um ano e quase nove meses, Bolsonaro já afirmou várias vezes que não demarcará mais nenhum centímetro de terra indígena. A marca de Bolsonaro é o aprofundamento da destruição, iniciada no governo Temer, da política indigenista.

Como Heleno explicaria, por exemplo, que, em pleno mandato do "esquerdista" Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) o movimento indígena também denunciou o governo brasileiro dentro e fora do Brasil, em pelo menos duas vezes com maior vigor, em 1996 e em 2000?

Primeiro foi um decreto, o de número 1775/96, que alterou o processo de demarcação e gerou a ira de indígenas e indigenistas. O então ministro da Justiça, Nelson Jobim, que bolou a mudança, teve que se explicar algumas vezes - esse tema aparece nos livros de memórias de FHC como um verdadeiro incômodo para o presidente. Depois, no ano 2000, o governo decidiu fazer pelo país afora uma série de "comemorações" dos 500 anos do chamado "descobrimento do Brasil". Os indígenas reagiram.

"Em 2000 foram organizadas uma marcha e uma conferência indígena na Bahia e depois essa marcha foi interceptada pela polícia. O que resultou num embate pesadíssimo. O governo FHC propunha 'comemorar' e os povos indígenas refletiam que os 500 anos foram de exploração e massacre e portanto não tinham o que comemorar. Era uma data de luta. E aquilo teve uma repercussão mundial", recorda-se Cleber Buzatto, do Cimi (Conselho Indigenista Missionário).

A tropa de choque da PM da Bahia marchou sobre indígenas caídos e as imagens ganharam o mundo. (No ano seguinte, eu visitava uma maloca na Terra Indígena Yanomâmi, em Roraima, quando indaguei a uma indígena o que ela pensava sobre sociedade não indígena. Ela disse que tinha medo de "bombagás". Eu não entendi. Um intérprete explicou que ela havia participado da marcha na Bahia e ficara traumatizada com o lançamento, sobre os indígenas, das bombas de gás lacrimogêneo pela PM baiana.)

Em 2011, os representantes indígenas na Comissão Nacional de Política Indigenista, criada por iniciativa da APIB, chegaram a anunciar o rompimento do diálogo com o governo Dilma, depois que o Ministério da Justiça e a Funai fixaram uma portaria que no ano seguinte inspirou uma outra portaria da AGU (Advocacia Geral da União), a de número 303, e que na prática inviabilizava inúmeras demarcações de terras indígenas no país.

A portaria foi interpretada como uma concessão do governo central às pressões da bancada ruralista no Congresso contra a Funai. Em maio de 2013, a Casa Civil, então comandada por Gleisi Hoffmann (PT-PR), pediu ao Ministério da Justiça a paralisação dos estudos da Funai referentes à demarcação de terras indígenas no Paraná. Argumentava supostas divergências com estudos da Embrapa local.

No dia 8 daquele mês, Gleisi foi ouvida numa audiência da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados. "Concordo que a Funai não está preparada e não tem critérios claros para fazer a gestão de conflitos [entre povos indígenas e produtores rurais]", disse Gleisi. "Estamos propondo reestruturar os procedimentos para que outros órgãos possam intervir nos estudos e qualificá-los", afirmou a então ministra, ao lado do advogado-geral da União, Luís Adams, inúmeras vezes criticado pelo movimento indígena.

O próprio Lula foi alvo de críticas dos indígenas. Ele sugeriu, em novembro de 2006, que os índios eram um dos "entraves" para o desenvolvimento do país. Foi no discurso de inauguração de uma usina de biodiesel em Mato Grosso ao lado do sojicultor e então governador Blairo Maggi, expressão maior do agronegócio. O então presidente disse que até o final daquele ano ele queria encontrar uma forma de "destravar" o país.

"Porque as pessoas não querem que a gente use carvão, as pessoas não querem que a gente faça termelétrica, não querem usina nuclear e não têm dimensão do preço da eólica, do custo da termelétrica a óleo diesel. [...] Eu estou me dedicando, em novembro e dezembro, a ver se eu pego todos os entraves que eu tenho com o meio ambiente, todos os entraves com o Ministério Público, todos os entraves com a questão dos quilombolas, com a questão dos índios brasileiros, todos os entraves que a gente tem no Tribunal de Contas para tentar preparar um pacote, chamar o Congresso Nacional e falar: 'Olha, gente, isso aqui não é um problema do presidente da República, não. Isso aqui é um problema do país'."

Dias depois, 51 organizações ambientalistas e indigenistas divulgaram uma nota de repúdio às declarações do presidente. O Cimi, um dos signatários, acrescentou: "É inaceitável que a maior autoridade do país, com este tipo de afirmação, reforce o alto grau de preconceito existente contra negros e índios e também desrespeite o trabalho do Ministério Público, que tem por função fiscalizar o cumprimento das leis do país".

O Conselho Indigenista disse ainda que "o presidente Lula foi eleito com votos de indígenas e negros, inclusive quilombolas. O que se espera é que seus direitos sejam plenamente respeitados e que o país seja colocado na rota de um desenvolvimento sustentável, que respeite a diversidade étnica e cultural existente no Brasil, nosso maior patrimônio. Um desenvolvimento que beneficie toda a sociedade e não somente o grande capital".

Em 2014, no começo da campanha de Dilma à reeleição, uma liderança indígena fez duras críticas à então presidente petista. Ela se chamava Sônia Guajajara, que desde 2011 passou a ganhar projeção no movimento indígena.

"O ministro da Justiça [José Eduardo Cardozo] obedece ordens superiores. A Dilma não está nem aí para nós. Para ela, nem existe índio no Brasil. O interesse dela é o avanço da economia e o desenvolvimento, não importa quem estiver no meio", disse Sônia à agência de notícias BBC em 2014. "A Dilma acha que temos que comprar, consumir e fazer cooperativas para ter dinheiro. Ela pensa que, para ficarmos bem, ter qualidade de vida, precisamos ter bens, chuveiro quente, casa de alvenaria."

A BBC quis saber se a relação com o governo federal havia piorado. "Piorou bastante, e o desgaste tem ocorrido por conta da omissão do ministro da Justiça em relação à questão de demarcação de terras. Os conflitos no campo se acirraram, e ele simplesmente suspendeu todos os processos de demarcação em curso."

Como é que todas essas cenas e eventos - aqui há apenas alguns, a lista é imensa - se encaixam na teoria conspiratória e sem provas de Heleno de que a APIB é um grupo de esquerda com uma agenda oculta, impatriótica, contra o atual governo? Simplesmente não se encaixam. Responsável pela inteligência do Palácio do Planalto e, por meio da sua subordinada Abin, da coordenação de todo o Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência), Heleno espalha desinformação.