Opinião: Desastre eleitoral de Bolsonaro reflete o presidente do eu sozinho
O presidente do Brasil não é filiado a nenhum partido político. Às vezes nos esquecemos dessa aberração política, inédita desde que a democracia foi retomada em 1985. Aberração porque um síndico de condomínio busca construir alianças, conversar com os vizinhos até da oposição e convencê-los a partir das suas ideias de governança. Bolsonaro não está nem aí para nada disso. Afinal de contas, ele abandonou e implodiu o próprio partido-miojo pelo qual se elegeu, o PSL.
Todo o cálculo político de Bolsonaro se resume ao que as pessoas podem oferecer ao seu mandato e aos planos políticos pessoais e do seu círculo restrito - a saber, sua família. Por exemplo, quando acreditou ter visto João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) expressarem desejos de concorrer à Presidência em 2022, imediatamente os bombardeou, inviabilizando qualquer possibilidade de coesão da direita em dois dos principais Estados da Federação. O resultado foi esse de ontem.
Eleito com a ameaça de destruir o sistema político, que acusava de ser todo ele corrupto e pervertido, Bolsonaro não hesita em esnobar o arco de alianças da sua própria campanha de 2018. Nos seus discursos, fica claro que jamais vai aceitar a afirmação de que foi eleito dentro desse arco ou como consequência desse arco. Acredita que foi escolhido apenas pelos seus próprios méritos - se está certo ou errado, é matéria para os cientistas políticos. E do filho Carlos Bolsonaro que, numa live de nove de novembro, ele chamou de "o grande responsável por eu estar aqui hoje".
No máximo Bolsonaro concede algum crédito às pessoas comuns que o ajudaram pontualmente na campanha, raramente a políticos e muito menos a partidos políticos. Certa vez também disse, na presença do ex-comandante do Exército, que o general era um dos responsáveis pela sua eleição. E só. Como outros líderes populistas, autoritários e egocêntricos, Bolsonaro é o Sol em torno do qual tudo deve girar.
Quando se sentiu ameaçado por um impeachment, correu para os braços do Centrão que ele tanto dizia, para efeitos eleitoreiros, execrar. Daí decorreu a pressão para s envolver mais diretamente na campanha municipal de 2020. Na reta final, Bolsonaro fez três lives no Palácio da Alvorada para pedir votos a cerca de 58 candidatos a prefeito e vereador. Convidou três deles para participar, ao seu lado, da transmissão em Brasília.
Nos vídeos, a má vontade presidencial transborda a cada segundo. Dirigindo-se aos candidatos que ficaram de fora, reclama que "a gente não tem como fazer campanha para todo mundo, ficaria cansativo na live". Alega que "infelizmente não tem como ajudar vocês todos". Como se fosse uma concessão imperial e não a tentativa de construir uma base política.
"Se eu fizer um programa eleitoral aqui [na live], com gente do Brasil todo, não vai ter cem pessoas assistindo a minha live porque o pessoal perde a paciência, vai embora", disse o presidente. Entre a audiência do seu vídeo e um gesto de boa vontade, claro, Bolsonaro fica com a primeira.
Bolsonaro se vitimiza para explicar a sua omissão nas campanhas municipais. Ao lado do candidato (derrotado nas eleições de domingo) Coronel Menezes, de Manaus (AM), ele disse que "gostaria" de participar da campanha na capital do Amazonas, mas infelizmente estava impossibilitado - por suposto, não pela pandemia que já matou 165 mil brasileiros.
"Eu tenho vários motivos. Primeiro que eu estaria abandonando aqui o trabalho que eu tenho que levar avante que é comandar o destino desse Brasil. Outra que eu não tenho recurso para tal, para deslocar hoje em dia teria que ter uma aeronave particular ou comercial e levar também algumas dezenas de seguranças comigo, então não tenho condições", desculpou-se Bolsonaro, ignorando que despesas de campanha poderiam ser pagas por doadores, bastando que o candidato interessado viabilizasse a viagem.
Estratégia escapista de Bolsonaro tem sido diminuir sua relevância, sair pela tangente. Mutatis mutandis, eis que o presidente da República "dono" de 57,7 milhões de votos em 2018 agora é um irrelevante, um nada. "Quer que eu eleja como? Eu não tenho como eleger. Eu acho que interfiro ali 5% talvez na quantidade de votos que vai ter, 6% ou quatro."
Na mesma live, de 10 de novembro, pela primeira e única vez Bolsonaro ensaia uma reflexão mais geral sobre o seu papel nas eleições municipais. Não chega a completar seu raciocínio, como é comum no seu discurso obscuro e falsificador da realidade, mas oferece uma pista.
"Nós temos mais ou menos 5,7 mil prefeituras pelo Brasil. Em todos locais teve gente que votou em mim, não tive zero voto em nenhum lugar. [...] Então muita gente me ajudou, infelizmente não tenho como ajudar vocês todos. Se eu tivesse com um partido acertado comigo, infelizmente não foi possível ficar no meu partido, nós não teria nenhum problema hoje em dia, estaria fazendo campanha só para o nosso partido e não teria problema nenhum."
Como é sabido, Bolsonaro está sem partido porque rompeu com o PSL em meio a uma briga pelo controle do Fundo Partidário. Ele queria mais espaço para si e seus filhos, desconsiderando que o partido tinha uma presidência e uma diretoria escolhidas antes da sua própria eleição à Presidência. Interveio de forma atabalhoada, amadora e irascível nos destinos da sigla vitoriosa na campanha presidencial. Ele até mandou que os eleitores "esquecessem" o PSL. Por isso não há "um partido acertado comigo".
Os vídeos revelam como foi a escolha de muitos dos nomes dos candidatos que Bolsonaro leu nas lives. Pessoas no entorno do presidente empurram os santinhos para Bolsonaro ler. O presidente da Embratur, Gilson Machado, apadrinhou diversos nomes.
A estratégia dos auxiliares é exposta pelo próprio Bolsonaro. Algumas vezes ele indaga "esse é peixe de quem?" Ou seja, nem sabe quem é o candidato. Não há convicção alguma na maioria das recomendações, à exceção de nomes sobre os quais Bolsonaro pode fazer um juízo de cunho pessoal: "conheço há muitos anos, é peixe meu"; "trabalhou muito tempo para para meu filho Eduardo"; e até "sou apaixonado pelo Mão Santa", ex-governador do Piauí.
Tentando olhar com certo distanciamento, agora que chegamos quase à metade do mandato de Bolsonaro, de certa forma ainda foi uma sorte para as instituições brasileiras, para o conjunto da sociedade civil e para a esquerda que o movimento de extrema-direita que venceu a Presidência em 2018 tenha tido à frente um homem tão emocionalmente incapacitado e intelectualmente limitado na arte da política. Os danos institucionais já são enormes e terríveis em muitas áreas, mas Bolsonaro poderia ter jogado o país no abismo de uma aventura golpista - ele tentou, ameaçou, mas não conseguiu, Bolsonaro faz a política do eu sozinho e daí decorre, em grande parte, o seu desastre particular deste domingo.
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