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Rubens Valente

Casos de covid-19 mais do que dobraram na terra Yanomami em 3 meses

Reunião do conselho distrital de saúde indígena Yanomami em março de 2020 - Pieter Van Eecke/Clin d"Oeil Films/Rede Pró-YY
Reunião do conselho distrital de saúde indígena Yanomami em março de 2020 Imagem: Pieter Van Eecke/Clin d'Oeil Films/Rede Pró-YY

Colunista do UOL

19/11/2020 00h05

Resumo da notícia

  • Relatório da Rede Pró-YY e indígenas divulgado na noite desta quarta-feira (18) afirma que casos saltaram de 335, em agosto, para 1,2 mil em outubro
  • Segundo o documento, 23 yanomamis e ye'kwanas já morreram pela doença em Roraima desde abril, dos quais 10 são óbitos confirmados e 13 são suspeitos

Relatório da Rede Pró-YY (Yanomami e Ye'kwana) e do Fórum de Lideranças YY divulgado na noite nesta quarta-feira (18) aponta que os casos de contaminação pelo novo coronavírus aumentaram cerca de 258% nos últimos três meses na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, passando de 335, em agosto, para 1,2 mil em outubro.

O número de mortos citado pelo relatório é de 23, dos quais dez confirmados e 13 sob suspeita, mas com sintomas semelhantes aos da covid-19. De acordo com o documento, cerca de 10 mil yanomamis e ye'kwanas já "podem ter sido expostos ao vírus", o que representa mais de um terço da população total do território (26 mil indígenas).

Mapa de casos de Covid-19 na Terra Indígena Yanomami até outubro/2020 - Relatório/Rede Pró-YY/ISA - Relatório/Rede Pró-YY/ISA
Mapa de casos de Covid-19 na Terra Indígena Yanomami até outubro/2020
Imagem: Relatório/Rede Pró-YY/ISA

Em contrapartida, apenas 4,7% da população total foram testados para o novo coronavírus até agora, número considerado "insignificante". Isso sugere que o total de contaminados "pode ser muito maior". Segundo dados do Ministério da Saúde, em 14 regiões do território, ou um terço do total, menos de dez testes foram realizados. Nas regiões mais testadas, o resultado é expressivo sobre a presença da doença. Na região do Demini, por exemplo, "uma das mais testadas na terra indígena, quase 90% da população foi confirmada para a Covid-19".

O relatório de 106 páginas é intitulado "Xawara: rastros da Covid-19 na Terra Indígena Yanomami e a omissão do Estado" e de autoria do Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana e da Rede Pró-YY. Criada em abril de 2020, a Rede Pró-YY é formada "por mais de 50 pesquisadores e apoiadores dos povos Yanomami e Ye'kwana, entre antropólogos, linguistas, indigenistas, advogados e artistas, em diálogo com os indígenas e suas associações". Ela "atua na luta pela garantia dos direitos territoriais, culturais e políticos dos povos da Terra Indígena Yanomami".

Degradação ambiental causada por garimpos aumentou 20% em 2020

O relatório integra a campanha #ForaGarimpoForaCovid que, segundo os organizadores, reuniu até agora mais de 410 mil assinaturas.

Os indígenas apontam que um dos principais motivos da explosão da covid-19 no território é a atividade clandestina dos garimpos ilegais. Segundo as lideranças yanomamis, há mais de 20 mil invasores. O vice-presidente da República Hamilton Mourão já reconheceu que cerca de 3,5 mil garimpeiros estão ilegalmente dentro da terra indígena.

Ouvido pelo ISA (Instituto Socioambiental), em texto distribuído à imprensa, o diretor da Hutukara Associação Yanomami e porta-voz da campanha, Maurício Ye'kwana, pediu "urgência na retirada dos invasores da nossa terra".

O vice-presidente da Hutukara, Dário Kopenawa, disse que o relatório "é um instrumento de denúncia dos problemas da invasão dos garimpeiros, da contaminação do meio ambiente como os nossos rios e ainda sobre as doenças, essa xawara [epidemia], que tem matado muita gente".

Progressão dos casos confirmados de Covid-19 entre os Yanomami e Ye'kwana em Roraima em 2020 - Relatório/Rede Pró-YY/ISA - Relatório/Rede Pró-YY/ISA
Progressão dos casos confirmados de Covid-19 entre os Yanomami e Ye'kwana em Roraima em 2020
Imagem: Relatório/Rede Pró-YY/ISA

Na região do Parima, dois yanomamis foram assassinados por garimpeiros em junho passado. "Em junho de 2020, o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana fez um novo alerta ao Governo Federal. A despeito do país estar enfrentando uma pandemia, o número de garimpeiros na TIY não parou de crescer e os invasores se tornaram um dos principais vetores da disseminação da Covid-19."

As áreas mais atingidas pela atividade garimpeira são as dos rios Uraricoera, Mucajaí, Couto Magalhães, Catrimani, Parima e Apiau. "De acordo com o Sistema Indicação Radar de Desmatamento do Instituto Socioambiental (Sirad-Y/ISA), 2.087,46 hectares já foram degradados na TIY, área equivalente a cerca de 1,9 mil campos de futebol. De janeiro a setembro de 2020, houve um aumento de 20% na degradação ambiental provocada pelo garimpo", diz o relatório.

A relação entre garimpo e covid-19 é ressaltada quando se vê o detalhamento dos casos da doença por região. No pólo-base Waikás, região com atividade garimpeira, por exemplo, de 183 indígenas que vivem nas comunidades Aracaçá e Waichannha, 49 foram contaminados pelo coronavírus.

Ordem do STF é descumprida pelo governo, aponta relatório

O documento revela ainda que "até hoje, os Yanomami e Ye'kwana aguardam a ativação das Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes) da Funai e a implementação de barreiras sanitárias, tal como decidido pelo STF em agosto deste ano na votação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709".

A ADPF foi ajuizada pelas entidades indígenas e está sob a relatoria do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Barroso.

"Apesar das denúncias das organizações indígenas e de inúmeras medidas legais tomadas para obrigar o Estado brasileiro a agir, ele tem sido ineficiente em conter a entrada dos invasores na TIY e omisso no enfrentamento deste grave problema que, além de representar violações de direitos territoriais e crimes ambientais, tem aumentado os riscos de transmissão do novo coronavírus nessas populações", diz o relatório.

Unidade de apoio à saúde virou foco da pandemia, diz o documento

O levantamento lembra que a chegada da covid-19 é agravada pela explosão dos casos de malária, que na Terra Indígena Yanomami quadruplicaram nos últimos cinco anos. "Os habitantes da TIY têm um longo histórico de epidemias letais diretamente relacionadas à presença de não-indígenas em seu território e as mortes decorrentes de malária foram muitas", diz o documento.

O trabalho faz referência ao período da ditadura militar (1964-1985), quando foi construída a rodovia Perimetral Norte, causadora de "numerosos impactos" e "significativas perdas demográficas".

"As consequências sociais desta dizimação se fazem sentir ainda hoje em várias regiões da TIY, onde o número de idosos é diminuto e as comunidades enfrentam sérios problemas de desestruturação social. De meados de 1987 a janeiro de 1990, a invasão garimpeira e o alastramento epidêmico da malária e de infecções respiratórias provocaram a morte de cerca de mil Yanomami, 14% de sua população em Roraima", aponta o relatório.

Óbitos de Covid-19 entre os Yanomami em 2020 - Relatório/Rede Pró-YY/ISA - Relatório/Rede Pró-YY/ISA
Óbitos de Covid-19 entre os Yanomami em 2020
Imagem: Relatório/Rede Pró-YY/ISA

O relatório também aponta que a Casai (Casa de Saúde Indígena), da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), vinculada ao Ministério da Saúde, se tornou "o principal foco de contaminação da Covid-19 entre os Yanomami logo nos primeiros meses de pandemia". A Casai funciona em Boa Vista (RR) como ponto de apoio aos indígenas que passam por tratamento de saúde na cidade e seus familiares e acompanhantes.

O documento afirma que há "uma degradação sistemática" do atendimento à saúde no território Yanomami, incluindo a "falta de prioridade na atenção primária à saúde e na prevenção de doenças", enquanto se prioriza "o uso de remoções por aeronaves em um cenário de contratos milionários e pouco transparentes com empresas de aviação".

Os indicadores de saúde na terra Yanomami, diz o relatório, "apresentam índices alarmantes de malária, desnutrição e mortalidade infantil, além de baixos índices de cobertura vacinal e de vermifugação". Nesse contexto, a Casai virou um foco da Covid-19.

"Notadamente, a insuficiência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs); o escasso estoque de insumos e medicamentos; os problemas de integração com a rede de serviços de saúde; a falta de infraestrutura adequada e formação dos profissionais de saúde para o atendimento em contexto multicultural; a situação precária e insalubre da Casai-Y e a falta de um eficiente Plano de Contingência (PC) contribuíram para esse cenário."

De acordo com boletim do Ministério da Saúde mencionado no relatório, nada menos que 80,9% dos funcionários da Casai (93, de um total de 115) haviam sido contaminados até outubro. A covid-19 também atingiu 290, do total de 922 funcionários do distrito especial de saúde indígena Yanomami.

"Durante os primeiros meses da pandemia, a situação na Casai-Y foi gravíssima. Levando em conta os dados disponíveis até o momento, observa-se por parte do MS/Sesai a falta de protocolos eficazes durante o avanço da pandemia entre os Yanomami e Ye'kwana, resultando, em um primeiro momento, no contágio de funcionários do Dsei-Y e, em seguida, na disseminação da doença entre pacientes indígenas que estavam na cidade de Boa Vista. Observa-se, por fim, que ao longo dos sete meses de pandemia, a Casai-Y continua sendo um dos focos de contaminação da Covid-19."

O UOL procurou, no final da noite desta quarta-feira (18), o Ministério da Saúde, o Ministério da Justiça, a Funai (Fundação Nacional do Índio) e a Vice-Presidência, responsável pela coordenação da CNAL (Conselho Nacional da Amazônia Legal), para que comentassem o relatório. Quando os órgãos enviarem respostas, este texto será atualizado.

A campanha #ForaGarimpoForaCovid é uma iniciativa do Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana e da Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye'kwana (SEDUUME), Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK), Texoli Associação Ninam do Estado de Roraima (TANER), Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA), Associação Kurikama Yanomami (AKY) e Hwenama Associação dos Povos Yanomami de Roraima (HAPYR). A campanha conta com o apoio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Instituto Socioambiental (ISA), Amazon Watch, Survival International, Greenpeace Brasil, Conectas Direitos Humanos, Anistia Internacional, Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Instituto Igarapé, Fundação Rainforest US e Fundação Rainforest Noruega.