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Rubens Valente

Contrato prevê multa à EBC se "não seguir linha editorial" da Secom

Chefe da Secom, Fabio Wajngarten, arruma microfone ao lado do presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada - Reprodução
Chefe da Secom, Fabio Wajngarten, arruma microfone ao lado do presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

18/12/2020 04h01

Resumo da notícia

  • Punição é prevista no termo assinado em 2019 entre a Empresa Brasil de Comunicação, que opera a TV Brasil, e a Secretaria de Comunicação do Planalto
  • Para especialista em comunicação, "sujeição" da emissora ao Executivo abre espaço para o governo federal "ditar condutas editoriais" da EBC
  • Em nota, Secom diz que "as pautas do contrato firmado entre a União/Secom e a EBC são relativas à comunicação estatal" e nega ameaça ao jornalismo

O contrato em vigor entre a Secom (Secretaria Especial de Comunicação), do governo federal, e a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), empresa pública responsável pela TV Brasil, prevê uma multa para o caso de a estatal "não seguir a linha editorial informada" pela secretaria.

Segundo dois ex-diretores da EBC ouvidos pela coluna e que pediram para não ter os nomes divulgados, em suas gestões nunca houve previsão de multas em contratos. A coluna localizou outros dois contratos assinados pela EBC no ano de 2020 com os ministérios da Defesa e da Agricultura. Em nenhum dos dois há previsão de multas sobre a linha editorial.

O UOL solicitou à Secom acesso à cópia da "linha editorial" mencionada no contrato assinado em 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro. A secretaria respondeu o seguinte: "As pautas do Contrato firmado entre a União/Secom e a EBC são relativas à comunicação estatal. A linha editorial é essa. O contrato é de prestação de serviços em que a Contratante é a União/Secom e a prestadora de serviços é a EBC".

A coluna também pediu que a Secom citasse um eventual precedente contratual para a inclusão, no contrato, do estabelecimento da multa por inobservância da "linha editorial", mas não foi mencionado precedente (veja ao final do texto a resposta completa da Secom).

O valor da multa corresponde a 5% sobre o valor de cada nota fiscal emitida pela EBC correspondente ao serviço executado. As notas são emitidas por blocos de serviços. Por exemplo, um conjunto de reportagens veiculadas na internet ou na televisão.

O contrato, fechado por dispensa de licitação, prevê um pagamento anual de R$ 35 milhões da Secom à EBC.

A coluna localizou um contrato assinado em 2014, no governo de Dilma Rousseff, que atribui à Secom o dever de "informar à contratada [EBC] e fiscalizar a linha editorial" necessária à execução do contrato, mas nada fala sobre o pagamento de multas.

O contrato da gestão petista previa ainda a criação, pela Secom, de um "conselho editorial", que teria "como principal responsabilidade a orientação editorial para a produção de conteúdo e para a grade de programação". Tal conselho seria formado por três integrantes e seus suplentes também "designados" pela Secom.

"Além das questões editoriais", diz o contrato, o conselho também trataria de "manual de redação" e "orientações editoriais", entre outros temas.

Plano de trabalho do contrato inclui reportagens e programas de entrevistas

Quadro de multas previstas no contrato assinado entre a Secom e a EBC (destaque em amarelo do UOL) - Reprodução - Reprodução
Quadro de multas previstas no contrato assinado entre a Secom e a EBC (destaque em amarelo do UOL)
Imagem: Reprodução

Datado de 27 de dezembro de 2019 e válido por um ano, o contrato em vigor foi assinado pelo então secretário especial de Comunicação Fábio Wajngarten (hoje lotado no Ministério das Comunicações), pelo diretor-presidente substituto da EBC, Rony Baksys Pinto, e pela diretora de jornalismo da EBC, Sirlei Batista. Na época do contrato, a Secom era vinculada à Presidência no Palácio do Planalto —em junho, ela migrou para o Ministério das Comunicações.

O contrato prevê a "prestação de serviços de comunicação, compreendendo serviços de televisão e vídeo, rádio e áudio, conteúdos de internet, monitoramento de mídia e serviços conexos, com o objetivo de informar aos cidadãos as ações e políticas públicas do Poder Executivo federal".

O plano de trabalho que acompanha o contrato lista uma longa série de serviços prestados pela EBC, como "flash ao vivo de jornalista sobre assuntos pautados pela Contratante [Secom], com ou sem entrevistado", um "programa de entrevista", "telejornal" —descrito como "produção de telejornal com notícias sobre as ações do Poder Executivo Federal, em estúdio.

O contrato estabelece, na cláusula décima, que compete à Secom "fiscalizar a linha editorial informada à Contratada [EBC] e necessária à execução do contrato". Na parte das multas, o contrato cita 11 hipóteses, entre as quais a questão de não seguir a linha editorial. Outra multa de 3% sobre o valor da nota fiscal pode ser aplicada em caso de a EBC "vazar quaisquer informações que sejam consideradas sigilosas e que tenha conhecimento, por motivo de execução do objeto deste Projeto Básico".

Especialista vê "sujeição" e espaço aberto para o governo "ditar condutas editoriais"

O professor da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP (Universidade de São Paulo) Eugênio Bucci, que foi diretor da Radiobrás no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, disse que o contrato, na forma como foi elaborado, cria uma "sujeição da empresa pública às determinações editoriais vindas do Palácio do Planalto e do Ministério das Comunicações".

"Essa sujeição pode contaminar o resto da empresa. E toda a empresa passa a ser tratada como uma produtora contratada pela Presidência da Republica. Isso seria um recuo, uma regressão, para um padrão de relacionamento entre a estrutura pública de comunicação e o Planalto, o poder central do governo federal, que não existia nem na ditadura militar."

Bucci ponderou que não seria um problema, em si, a contratação "de uma produtora para dar visibilidade ao que quer que seja", como a transmissão de atos do Executivo. O problema maior, para o professor, é que o contrato avança sobre a produção de informação e não traz contornos bem definidos sobre o seu objeto.

"Ao não ter um objeto definido, os termos do contrato podem ser usados para o corpo todo da EBC, o que é um escândalo. Pode-se dizer, por exemplo: 'Olha, não pode mais usar ponto e vírgula nos textos da EBC'. Como o escopo do objeto do contrato não é bem definido, cria-se um espaço para ditar condutas editoriais em todos os campos da EBC. Esse que é o risco."

Gestão Temer extinguiu conselho curador

Em 2017, no segundo ano da Presidência de Michel Temer, a EBC extinguiu, dentro de uma MP (Medida Provisória) que reformulou a EBC, o conselho curador da estatal, formado por 22 membros, entre os quais 15 representantes da sociedade civil. Criado em 2008, o conselho tinha por objetivo, entre outros, avaliar questões levantadas sobre a linha editorial da TV Brasil e outros órgãos de comunicação sob o guarda-chuva da EBC.

Na época, uma carta produzida por jornalistas da Agência Brasil, um braço da EBC, denunciou que o fim do conselho curador colocava a "independência editorial da Agência Brasil em risco". "Com a MP, chefias da empresa têm acentuado uma relação de subordinação a interesses do governo, em prejuízo do interesse público", dizia a carta.

"Temos produzido matérias que são rejeitadas, picotadas, descontextualizadas e até reescritas com as justificativas menos republicanas possíveis, escondendo a verdadeira intenção de 'poupar' críticas ao governo."

A mesma MP, que acabou aprovada pelo Congresso, criou um "comitê editorial", previsão que passou ao Estatuto da EBC hoje em vigor no governo Bolsonaro. Tal comitê seria um "órgão técnico de participação institucionalizada da sociedade na EBC, terá natureza consultiva e deliberativa, sendo integrado por onze membros indicados por entidades representativas da sociedade, mediante lista tríplice, e designados pelo presidente da República".

A coluna apurou, contudo, que o comitê não chegou a ser escolhido ou instalado desde 2017. No site da EBC na internet não há nenhuma informação sobre a composição do comitê.

Para Bucci, o conselho curador não era a melhor solução e, no caso das multas do contrato, teria pouca força para agir. Mas sua existência já representava uma salvaguarda.

"Aquele conselho era uma boa ideia, mas era cosmética. Porque o poder [real] da EBC estava em outro conselho, o de administração, que só tem representantes dos ministérios. O conselho curador tinha uma função mais de consulta, quando muito emitir um voto de desconfiança, mas não era um órgão com poder real. O problema não passa por isso, o buraco é muito mais embaixo. A EBC é totalmente controlada pelo governo federal, seja [durante as gestões de] Lula, Dilma ou Bolsonaro. O resto era cosmético."

Segundo o professor, "o comando de uma empresa pública é feito no conselho de administração. A execução do plano, o orçamento, tudo é aprovado pelo conselho. E isso sempre foi controlado pelo poder federal."

"Mas é melhor ter um conselho consultivo? Prefiro que sim. Que seja um conselho, mesmo tendo pouco poder, pois vira um fator de constrangimento."

Secom diz que multa não representa risco ao jornalismo da EBC

Por e-mail, a Secom respondeu aos questionamentos do UOL sobre o contrato com a EBC. A coluna quis saber se a inclusão de multa contratual sobre "linha editorial" não representa risco ao exercício do jornalismo praticado pela EBC. A Secom negou.

"A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) presta serviços de comunicação à Secretaria de Comunicação da Presidência da República para informar os cidadãos sobre os atos e fatos do governo federal. Como Contratada, a EBC realiza a cobertura informativa conforme previsão contratual. A legislação de regência da contratação exige o estabelecimento de sanções nos contratos administrativos, tal e qual o celebrado entre a União/Secom e a EBC (v. arts. 55, inciso VII, e 87, II, da Lei nº 8.666/1993), em especial as penalidades cabíveis e os valores da multas. O contrato de prestação de serviços firmado entre as partes rege a comunicação estatal, e não a pública, motivo pelo qual não se vislumbra qualquer 'ameaça real ou potencial ao exercício do jornalismo na redação da EBC'", respondeu a Secom.

O UOL procurou a EBC, por meio de sua assessoria, na última segunda-feira (14), mas não houve resposta até o fechamento deste texto.

A coluna também procurou a ouvidora da EBC, Christiane Samarco, que respondeu: "A Ouvidoria recebe e responde manifestações do cidadão que nos chegam pelos canais oficiais, de acordo com normas e leis que regem o trabalho de uma ouvidoria pública. Ouvidoria não fala em nome da empresa nem dá entrevista. Esta prerrogativa é exclusiva da direção e os contatos são feitos via Gecom".