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Rubens Valente

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na era bolsonarista, expor horrores da ditadura é tarefa cívica

Ditadura Militar no Brasil foi de 1964 a 1985 - Kaoru/CPDoc
Ditadura Militar no Brasil foi de 1964 a 1985 Imagem: Kaoru/CPDoc

Colunista do UOL

14/06/2021 08h22

O negacionismo que mata na pandemia também perverte a compreensão da história do país, em especial daquela parte exaltada pelos seguidores do presidente Jair Bolsonaro. Se é fácil mentir em 2021 sobre um remédio chamado cloroquina, imagina o que pode ser dito sobre uma ação política e armada desencadeada há 57 anos.

Setores da população perderam a vergonha que poderiam ter ao elogiar a ditadura militar (1964-1985) e os métodos que os generais lançaram mão para permanecer no poder por 21 anos e que incluíram torturas e assassinatos de adversários, censura à imprensa, fechamento do Congresso e perseguição política.

A liberalidade para distorcer eventos históricos se beneficia de um processo de apagamento da memória. A amnésia é intensamente fabricada em grupos bolsonaristas e pode atingir os jovens com mais facilidade. Lembremos que todos os brasileiros com menos de 36 anos de idade nunca viveram numa ditadura. Assim fica mais fácil falsificar sobre o que ela de fato foi.

Conforme os anos vão passando, os brasileiros ficam cada vez mais distantes do que significa viver num regime autoritário, no qual garantias fundamentais são suspensas, liberdades são cassadas e crimes são cometidos impunemente pelo próprio Estado. As pessoas vão perdendo os fios que poderiam conectá-las às experiências reais de quem viveu as agruras do período.

Abre-se espaço para falsas narrativas que, se ouvidas na época dos acontecimentos, só provocariam risadas. Por exemplo, a fantasia de que não houve um golpe de Estado em 1964. Até um ministro do STF - que, aliás, nasceu três anos depois do golpe - já o qualificou de mero "movimento".

Daí que aprofundar o conhecimento sobre o período volta a ser artigo de primeira necessidade. Reavivar a memória é um alerta para não viver de novo.

Vai nessa direção a revelação do UOL nesta segunda-feira (14), em reportagem da jornalista Amanda Rossi, sobre a internação, pela ditadura, de presos políticos em unidades psiquiátricas. Ao mesmo tempo, trabalhos graves e inéditos como esse reforçam a impressão de que sabemos muito sobre a ditadura, mas precisamos saber cada vez mais.

Passadas mais de três décadas da redemocratização, já parecem bem delineados os principais momentos da ditadura, os seus protagonistas e os eventos e personagens mais célebres da luta guerrilheira. Isso se deve a estudos tanto abrangentes quanto detalhados feitos por grupos de familiares dos mortos e desaparecidos, professores e alunos universitários, pesquisadores, jornalistas, escritores e membros do Ministério Público.

Por outro lado, há uma infinidade de aspectos da ditadura que, por motivos que não caberia aqui discutir, passam ao largo da história oficial do período. Falo das vítimas anônimas da ditadura e dos impactos que ela causou a vários setores da vida nacional, do massacre indígena aos projetos de ocupação da Amazônia, da liberdade de expressão à educação escolar, da produção artística a combate às epidemias. Nada ficou ileso a partir do projeto geral de país que os militares idealizaram e tentaram implantar.

A boa notícia é que há nitidamente um esforço, inclusive impulsionado pela Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), contra esse apagamento. Um estímulo é a modernização de órgãos que concentram documentação sobre o período, como o Arquivo Nacional, que guarda milhões de páginas produzidas na ditadura.

Os principais jornais e revistas do país também organizaram seus acervos digitais. Complicada até poucos anos atrás, hoje a consulta à documentação está ao alcance de um clique no teclado do computador. Iniciativas da sociedade civil como o Armazém Memória ampliam o acesso ao registro documental e iconográfico do período.

Outra relevante contribuição tem sido dada pelo Ministério Público Federal. Ao demandar a abertura de procedimentos na Justiça Federal, procuradores como Eugênia Gonzaga, entre outros, ampliam o conhecimento sobre o período durante o esforço de buscar a responsabilização civil e militar de agentes da ditadura por crimes contra os direitos humanos.

Muito já se revelou sobre a ditadura no campo da produção bibliográfica. Figuras fundamentais para a compreensão do período, como o ex-presidente João Goulart e sua mulher Maria Thereza, o militar Sebastião Rodrigues de Moura, o "Major Curió", e o guerrilheiro Carlos Marighella, entre tantos outros, já foram objeto de investigações de fôlego - como os notáveis livros de Jorge Ferreira ("Jango, uma biografia", ed. Civilização Brasileira, 2011), Wagner William ('Uma mulher vestida de silêncio", ed. Record, 2019), Leonencio Nossa ("Mata!", ed. Companhia das Letras) e Mário Magalhães ("Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo", ed. Cia das Letras, 2012), só para citar algumas obras imprescindíveis de uma safra mais recente.

De um modo geral também já sabemos o que os principais oficiais militares do período pensavam sobre eles mesmos e a ditadura, como ficou registrado pelo projeto de memória oral da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e pelos livros de memórias de alguns desses conspiradores e ditadores. Está razoavelmente consolidada a versão "dos de cima", isto é, o ponto de vista de quem ocupava o topo da cadeia de comando da ditadura.

Mas a "outra história" vem sendo escavada, contada e recontada nos últimos anos com mais atenção e afinco.

Aqui e ali surgem luzes sobre aspectos pouco conhecidos da ditadura militar. Pode ser o papel do Brasil no golpe militar do Chile, em 1973, descrito pelo jornalista Roberto Simon ("O Brasil contra a democracia", ed. Companhia das Letras, 2021). Ou a repressão à comunidade LGBT, tema do livro de Renan Quinalha ("Contra a moral e os bons costumes"), anunciado para setembro deste ano pela Companhia das Letras. Ou a pesquisa em fase final realizada pelo ex-deputado federal Gilney Viana sobre os trabalhadores rurais mortos e desaparecidos.

Há mergulhos intimistas, como a história do casal de jovens estudantes preso e torturado pela ditadura narrada no livro e documentário "Em nome dos pais" (ed Intrínseca, 2017), do jornalista Matheus Leitão, que descreve a barbárie que a ditadura cometeu contra os jornalistas Miriam Leitão e Marcelo Netto. Ou a trajetória de um líder estudantil de Brasília sequestrado e desaparecido até hoje e tratada em "Paixão de Honestino" (ed. UnB, 2019), de Betty Almeida, professora da UFPB.

A atenção do pesquisador pode se fixar no fim suspeito de um servidor público, como em "A morte do diplomata" (ed. Tema, 2017), do jornalista Eumano Silva. Ou na ação das empresas de construção de obras públicas durante a ditadura, conforme descrita em "Estranhas catedrais" (Eduff, 2014), de Pedro Henrique Campos, professor de história da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Ou na relação da ditadura com o governo francês, tema de "Liberdade vigiada" (ed. Record, 2019), do professor de história Paulo César Gomes.

Aqui nem incluo a vibrante produção de documentários sobre o período, um tema todo à parte.

A multiplicidade recente de temas demonstra que a ditadura está longe de se esgotar como objeto de pesquisa e reflexão. A urgência política agrega outro fator de interesse. Na era bolsonarista, para remar contra o negacionismo, expor os métodos e consequências da ditadura é tarefa civicamente essencial.