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Indígenas feridos em protesto na frente da Câmara apontam truculência da PM
Indígenas feridos por balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta disparados pela Polícia Militar na frente da Câmara dos Deputados nesta terça-feira (22) relataram ações truculentas da PM, como impedir que indígenas socorressem vítimas que estavam desmaiadas no asfalto e agredir um estudante indígena que apenas fazia imagens do protesto.
A coluna entrevistou 12 indígenas com sinais de ferimentos pelo corpo e relatos de dores, tonturas e dificuldades respiratórias. "Tivemos 13 indígenas feridos, três em situação mais grave, felizmente estamos todos bem. Mas é um absurdo, é uma truculência muito grande contra quem está aqui apenas para defender um direito constitucional", disse Sônia Guajajara, da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
A PM afirmou que dois policiais legislativos e um policial militar foram feridos com flechadas - eles foram socorridos e liberados.
"Fizeram uma repercussão grande do policial que levou uma flechada, mas foram vários parentes que ficaram no chão, que desmaiaram, tiveram problema, levaram tiros [de borracha], aí sempre tentam nos colocar como seres brutos, como animais, na verdade não é isso. Montamos acampamento, passando frio, às vezes tendo que regrar comida, estamos aqui resistindo. E agora vem essa brutalidade toda, essa violência", disse Raiana Xipaya, do Médio Xingu, em Altamira (PA), que disse ter desmaiado após inalar gás lacrimogêneo das bombas lançadas pela PM em sua direção quando tentava socorrer outro indígena.
Os indígenas protestavam contra a aprovação do projeto de lei nº 490 na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara, presidida pela bolsonarista Bia Kicis (PSL-RJ), que altera a política indigenista do país. A proposta acabou aprovada pela CCJ na quarta-feira (23) por 40 votos a 21. Entre os deputados favoráveis ao projeto estão integrantes do DEM, do PSDB, do Novo e dos partidos da base governista, como o PSL. A lista completa da votação pode ser conferida no site da Câmara na internet.
Segundo as organizações indígenas e indigenistas, o projeto é inconstitucional e afronta a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o país é signatário, que prevê a consulta livre, prévia e informada dos indígenas sobre todas as iniciativas do Estado brasileiro que atinjam seus direitos.
O conflito da terça-feira começou justamente porque a Câmara, comandada pelo deputado da base bolsonarista Arthur Lira (PP-AL), se recusou a permitir a entrada dos indígenas que queriam acompanhar a votação na sala da CCJ e instalou grades na frente do Anexo II.
De acordo com Dorivan Munduruku, de Jacareacanga (PA), que integra uma delegação de mais de 80 mundurukus que vieram a Brasília, o conflito começou depois que os policiais militares começaram a "fazer provocações" e impedir a presença dos indígenas perto das grades. "A gente veio para fazer a manifestação pacífica. Os parentes tentaram entrar, eles não queriam deixar, os próprios policiais começaram a fazer provocação, que 'aqui não podia, com gestos', mandando a gente embora", disse Dorivan.
Alguns indígenas retiraram ou derrubaram as grades, o que deu início ao conflito. A PM argumentou, em nota, que grades foram jogadas contra os policiais, mas não foram divulgadas imagens que confirmem essa alegação da polícia.
"Aí eles policiais começaram a jogar [bomba]. Jogaram bomba barulhenta e gás para todo lado. Eu disse 'calma, estamos sem nada, estamos aqui só para fazer manifestação'. Aí eu vi que tinha um parente desmaiado no chão. Fiquei do lado dele e eles [policiais] avançaram. A gente estava sem nada, sem arco, sem nada. Eles viram que a gente estaca socorrendo os parentes, mesmo assim atiraram, ficaram jogando as bombas", disse Dorivan.
"A gente não podia nem respirar mais, Me senti mal demais, mas fiquei pensando 'bora resistir, porque o gás passa, prejudica a saúde, mas a luta continua'."
A comitiva munduruku já havia sido impedida de sair em ônibus do Pará por um grupo de garimpeiros e indígenas cooptados pelo garimpo que queriam impedir que eles denunciassem, em Brasília, a destruição provocada pelo garimpo ilegal nas terras mundurukus. Um ônibus foi depredado. Só conseguiram chegar a Brasília sob escolta.
"Infelizmente é essa a situação nossa. A gente veio para manifestar, exigir nosso direito. Lá [no Pará], era problema, que não deixaram os caciques vir. Chegando aqui, outro problema. A gente fica sem saída. Mas a gente vai continuar resistindo, lutando por nossas crianças e pela nossa terra."
Líder indígena bateu a cabeça, desmaiou, levou balas de borracha e foi internado
O indígena sapará Alcebias Mota Constantino, liderança da terra indígena Raposa/Serra do Sol e representante do CIR (Conselho Indígena de Roraima), que agrega mais de 55 mil indígenas, foi uma das vítimas mais sérias na frente do Anexo II. Ele disse que o conflito começou porque a PM se recusou a permitir a passagem dos indígenas. Alcebias disse que estava apenas com uma garrafa d'água na mão e não tentou agredir os policiais.
"Quando a gente encostou mais na grade, aí que começou. Aí a gente avançou também. A gente não esperava aquela reação toda. Começou o tumulto todo e fui tentar me proteger. Quando eu virei as costas fui atingido, primeiro no braço e em seguida explodiu uma bomba bem próximo de mim. Essa explosão me jogou no chão, bati a cabeça no concreto. Já estava meio desorientado, alguns parentes conseguiram me arrastar. A partir desse momento ficamos no fogo cruzado. Eu no chão e os policiais continuaram atirando, mesmo comigo no chão e os parentes me socorrendo", relatou Alcebias.
Diversos indígenas confirmaram que a PM continuou disparando balas de borracha e bombas mesmo quando tentavam socorrer Alcebias no chão. Ele inalou grande quantidade de gás lacrimogêneo e corria risco de morte porque não estava conseguindo respirar, de acordo com Leandro Tupinikim, estudante de medicina em Brasília, que integra a rede nacional de apoio de médicas e médicos populares e estava no protesto na terça-feira. Ele também tentou socorrer Alcebias, sem conseguir porque a polícia continuou jogando bombas e disparando balas de borracha na direção dos indígenas.
"O gás causa irritação nas vidas aéreas e dificuldade de respirar. Tem que lavar rápido, tirar todo o gás, lavando com soro fisiológico e e leite de magnésia para evitar queimaduras e ardência. Com certeza pode matar, essa era a nossa preocupação com o Alcebias", disse Leandro.
"Tentei atender num primeiro momento mas não consegui devido a uma bomba que estourou perto de mim. Não consegui chegar onde o paciente estava. Ele foi atendido pelos bombeiros e levado pelo SAMU ao Hospital de Base", disse o estudante de medicina.
Tupinikim disse que a rede de apoio atendeu naquele dia "mais de 20 indígenas passando mal, com dificuldades de respirar, devido à ação truculenta da polícia. Fizeram uma verdadeira arapuca, tinha policial atirando de cima [do prédio] e outros atirando de lado. Era muito gás, spray, muita bomba", disse o estudante.
Juma Xipaya, de Altamira (PA), também é estudante de medicina, calcula que o socorro a Alcebias demorou mais de 20 minutos e confirmou que foi impedido pela ação da PM. "Resolvi correr para ajudar, verificar a pulsação, a respiração, nesse momento eles [policiais] começaram a atirar. Pegamos o parente e levamos para o outro lado da rua e mesmo assim eles continuaram atirando. O Corpo de Bombeiros estava ao lado, e nós estávamos pedindo socorro. Eu gritei, vários parentes gritaram pedindo socorro e eles não atenderam nesse momento porque os policiais estavam atirando."
Juma disse que e outros indígenas estavam lavando o rosto de Alcebias, no chão, quando a polícia "atirou novamente". "Eu contei umas quatro bombas de gás e tiros de borracha, uma bala bateu no cocar, uma de gás explodiu e cortou minha mão. Fiquei pedindo socorro até que outros vieram e carregaram. Eu tive um pequeno desmaio. Quando retornei [à lucidez], procurei por ele, a polícia continuava atirando. Inclusive a polícia atirou mesmo com o pessoal dos bombeiros socorrendo. E não foi só cápsulas [de bomba], mas balas contra os próprios bombeiros."
Como estudante de medicina, ela disse que "é gravíssimo, é um crime, é um atentado contra nossas vidas", impedir o socorro a um ferido, "porque ele estava agonizando, mal conseguindo respirar".
Ainda se recuperando do que passou, Alcebis disse que seu "sentimento é de indignação". "A gente está enfrentando a pandemia, já perdemos muitas lideranças - há dois dias perdemos a cacica Rosimeire - e o governo vem com isso [projeto de lei], sem pensar nas comunidades, e vem aumentando mais esse ódio, principalmente por parte de quem não conhece nossa realidade. Essa fala deles que vem invadir os territórios, atacar os parentes sem dó mesmo. Para mim não é novidade. Essa luta nunca foi fácil, porém intensificou mais nesse governo, não se importa com os povos originários e a todo custo quer passar por cima. Nossa batalha nunca foi fácil e não é", disse Alcebias.
O xokleng Fernando Almeida, estudante de jornalismo da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), relatou que no momento do conflito foi agredido com uma pancada na cabeça por trás, por um PM, sem qualquer explicação.
"Eu estava na frente para tirar a foto do meu povo, devidamente identificado [com um crachá], sou da comunicação do 'Levante'. Estava de costas para o policial, tirando a foto, quando escutei um barulho e bateu uma coisa no meu rosto. Fiquei assustado, corri. Está doendo, ainda esta um pouco inchado. Continuei tirando fotos. O gás começou a me fazer mal. Quando voltei para o acampamento meu nariz começou a sangrar, fui ao atendimento, me deram remédio para dor de cabeça, minha cabeça começou a doer muito", disse Almeida.
"Eu fiquei muito triste porque estava devidamente identificado, com uma câmera na mão, e fui o primeiro a levar uma paulada no rosto, covardemente, atrás de mim, sem aviso sem nada. Eu estava ali trabalhando."
Antônio Eduardo Oliveira, secretário-geral do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), disse que os indígenas "foram reprimidos no direito legitimo de se manifestar, de estar lutando pelos seus direitos".
"Foi um momento de repressão, de violência, com a qual os povos indígenas não estavam contando. Eles vieram para se manifestar de forma pacífica contra um projeto de lei que fere seus direitos. [A ação da PM] foi totalmente descabida e merece a devida apuração e a condenação nossa e de todas as instituições."
PM diz que "foi necessário uso progressivo da força"
Em nota à coluna, a Polícia Militar do DF disse que "montou um esquema de segurança na Câmara dos Deputados durante a votação, nesta terça-feira (22), do projeto de lei que altera a demarcação de terras indígenas. A corporação manteve grande efetivo policial para garantir a segurança dos manifestantes".
"A situação estava tranquila até por volta de meio-dia e meia, quando um grupo de indígenas tentou invadir o Anexo II da Câmara. De início, eles derrubaram os gradis da entrada do edifício e os arremessaram contra os policiais legislativos. Após isso, cerca de 500 índios arremessaram pedras, flechas e tacapes nos policiais. Um policial militar foi atingido por uma flechada no pé. Dois policiais legislativos também foram vítimas das flechadas. Um foi atingido na perna e o outro no tórax. Os três foram socorridos pelo serviço médico do Congresso. Diante do exposto, foi necessário o uso progressivo da força", diz a nota da PM.
Indagada sobre os PMs teriam impossibilitado o socorro a feridos com bombas e balas de borracha, a PM não se manifestou sobre esse ponto.
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