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Senador discutiu relatório restrito com Funai antes de terra ser liberada
Um documento produzido por um diretor da Funai (Fundação Nacional do Índio) revela que o senador Zequinha Marinho (PSC-PA) manteve uma reunião com o presidente do órgão, Marcelo Xavier, e outros servidores para discutir um relatório interno produzido por uma equipe da expedição do órgão que havia localizado vestígios de indígenas isolados no Pará. Na reunião, de acordo com o documento, foram discutidos supostos "impropriedade ou irregularidades, cunho ideológico e imprestabilidade" do relatório.
Nesta quarta-feira (25), quando venceu o prazo de renovação da portaria de restrição de uso que protegia o mesmo território, a Funai anunciou que não irá renová-la - sob protestos de organizações não governamentais e do MPF (Ministério Público Federal), que obteve na Justiça Federal uma decisão que determina à Funai renovar o documento.
A primeira portaria do gênero sobre o território é de 2011 e vinha sendo renovada desde então. Uma portaria de restrição impede a circulação de não indígenas e permite à Funai realizar expedições e ações de controle. Ao recusar a renovação, a Funai desconsiderou recomendações do relatório da expedição. Os servidores recomendaram que novos trabalhos de campo fossem realizados e que a portaria de interdição do território fosse renovada.
Os processos administrativos da Funai relativos à localização e monitoramento de indígenas isolados são considerados internos e restritos no órgão, com acesso permitido a poucas pessoas. Em julho de 2021, por exemplo, quando a coluna solicitou informações sobre a mesma expedição no Pará, que na época estava sendo organizada, a Funai respondeu que "expedições têm caráter reservado".
Pastor evangélico da igreja Assembleia de Deus, o senador Marinho é um dos principais adversários políticos da interdição da Terra Indígena Ituna/Itatá, de 142 mil hectares, localizada entre os municípios de Altamira, Anapu e Senador José Porfírio, na região do médio rio Xingu, no Pará. Em setembro de 2019, o senador escreveu uma carta ao então ministro-chefe da Segov (Secretaria de Governo) da Presidência da República, o general da reserva Luiz Eduardo Ramos, para pedir que fosse anulada a portaria de interdição da área.
Conforme a coluna noticiou em novembro de 2020, depois da carta a Funai passou a trabalhar com a hipótese de reduzir à metade a porção a ser interditada do território. Na sequência, a Funai organizou uma expedição em plena pandemia do novo coronavírus.
Diretor aproveitou "apenas alguns fatos" de relatório técnico
O encontro do comando da Funai com o senador, que não aparece nas agendas de compromisso de Marcelo Xavier disponíveis na internet, ocorreu no último dia 9 de novembro. Um mês depois, o diretor da DPT (Diretoria de Proteção Territorial) da Funai, o delegado da Polícia Federal Cesar Augusto Martinez, afirmou em despacho que a Funai "não localizou nem identificou nenhum grupo (s) de índio (s) em isolamento na área interditada". Afirmou que estava "preservando o direito consagrado de propriedade na área até então restringido de forma absoluta", ou seja, não seria mais necessária a interdição.
Conforme Martinez argumentou em despacho dirigido a uma assessora técnica do gabinete da presidência da Funai em 12 de novembro - três dias depois do encontro com o senador -, o relatório da expedição é "um documento interno na CGIIRC", o setor da Funai responsável pelo tema dos indígenas isolados, "e depende de validação tanto pelo coordenador geral quanto pelo DPT". Assim, disse o delegado, "foram aproveitados apenas alguns fatos que realmente possuíam alguma técnica e cientificidade".
No mesmo despacho, o diretor de Proteção Territorial falou da reunião com o parlamentar do PSC e insinuou que poderiam ocorrer apurações administrativas contra os servidores que participaram da expedição e assinaram o relatório final: "Assim, considerando suas [da assessora] manifestações ao presidente da Funai e ao senador Zequinha Barbosa [sic, Marinho], bem como aos demais participantes da reunião realizada na sala de reuniões da Presidência no dia 9/11/2021, por volta das 10h30, a respeito das impropriedades ou irregularidades, cunho ideológico e imprestabilidade do Relatório Técnico de Expedições de Localização de Índios Isolados nº 01/2021, solicito sua manifestação formal a fim, caso sejam confirmados tais fatos, de subsidiar o encaminhamento a [sic] Corregedoria da Funai para apuração de possível transgressão por parte dos autores do Relatório".
Senador diz que defende "assentados rurais"
Procurado pela coluna, Zequinha Marinho afirmou, por meio de sua assessoria, que "a atuação do senador vem no sentido de resolver os conflitos agrários iniciados e motivados pela Portaria de Interdição Nº 38/2011/Funai, que desconsiderou o ordenamento territorial do Estado do Pará".
Indagado sobre qual foi a sua manifestação sobre o relatório durante a reunião na Funai, o senador não esclareceu, dizendo apenas: "Quanto às questões técnicas, embora o senador tenha conhecimento que naquela área não existe a ocorrência de índios isolados, não emitirá opinião sobre o relatório".
Na nota à coluna, o senador disse ainda que antes da portaria de restrição, o governo do Pará criou em 2010 um assentamento e "retirou 150 famílias de trabalhadores rurais das suas antigas terras". "O senador luta pela regularização fundiária em todo o Estado e defende os assentados rurais que foram remanejados pelo governo para aquelas terras. [...] Novamente destacamos que sua atuação tem o único propósito de resolver o conflito agrário na região do município de Senador José Porfírio, que já se estende há mais de uma década."
Equipe solicitou nova portaria e mais trabalhos de campo
Na nota à imprensa nesta quarta-feira, a Funai disse que a decisão de não renovar a portaria de restrição de uso está relacionada aos resultados da expedição realizada pelo órgão em 2021 em Ituna/Itatá. Contudo, silenciou sobre a parte das recomendações e "encaminhamentos" que constam do mesmo documento.
O relatório diz à página 75: "Considerando que existem indícios fortíssimos de que esse complexo de terras indígenas do Médio Xingu abriga um ou mais povos isolados, além de que esses mesmos indícios apontam para a Terra Indígena Ituna/Itatá como de sua ocupação tradicional, mostra-se necessário, sim, retomar os trabalhos de localização que haviam sido interrompidos no interior da TI Ituna/Itatá por questões de segurança no ano de 2016".
Na parte dos "encaminhamentos", a equipe recomendou também "a publicação de nova portaria de restrição de uso compreendendo a área integral da Terra Indígena Ituna/Itatá para aprofundamento dos estudos de localização de indígenas isolados", a retirada de todos os invasores do território, a criação de uma base permanente de proteção e a "retomada das atividades de localização de indígenas isolados", entre outras medidas.
O relatório disse ainda que o território está recortado por "derrubadas" de floresta, "com elevado trânsito de grileiros e invasores", o que torna "extremamente mais dificultosa a execução do trabalho de localização" dos indígenas isolados. Para novos levantamentos de campo, afirmou a equipe, é necessário "um conjunto de medidas para executar a estratégia mais adequada".
O relatório foi elaborado e assinado por cinco experientes servidores da Funai que também formaram a equipe da expedição, incluindo um dos mais conhecidos e antigos no órgão, o indigenista Jair Candor, que no ano de 2019 recebeu o Prêmio Espírito Público na categoria meio ambiente. A viagem ocorreu de 22 de agosto a 14 de setembro passado e envolveu servidores do Ibama e de outros órgãos.
Ao longo da expedição, os servidores identificaram três registros de índios isolados, dois dos quais considerados "referência em estudo" e o terceiro como "informação em qualificação". Entre os vestígios foram citados uma panela de cerâmica indígena, um "casco de jabuti 'tratado' de forma diferente do que fazem os não indígenas na região", restos de cerâmica indígena em uma capoeira, além de diversos cortes na vegetação. Embora a equipe não tenha visualizado os indígenas isolados, o relatório enfatizou a necessidade de continuar os levantamentos de campo.
"A partir dos trabalhos desenvolvidos, não foi possível confirmar essa referência de indígenas isolados; contudo, deve-se dizer, o trabalho foi apenas retomado e ainda requer um longo processo para a sua conclusão. Ainda que os dados coletados pela expedição não sejam suficientes para confirmar a Referência em Estudo, foram encontrados fortes vestígios e indícios da presença de indígenas isolados. [...] Ou seja, de modo algum é possível descartar a presença de indígenas isolados no atual perímetro da TI Ituna/Itatá, e menos ainda afirmar que esses indígenas lá não existiam, quando em verdade eles podem ter se refugiado nas terras indígenas vizinhas, em áreas de floresta mais preservadas", diz o relatório.
Funai não responde sobre reunião com senador
Indagada pela coluna nesta quinta-feira (27) sobre a reunião com o senador Zequinha Marinho em novembro referida no documento do diretor do órgão, a Funai não havia se manifestado até o fechamento deste texto. A coluna também indagou o motivo pelo qual a reunião não consta das agendas do presidente do órgão, Marcelo Xavier, disponíveis na internet, se servidores do órgão são ou serão alvos da Corregedoria e por que a Funai não acolheu as recomendações da expedição - igualmente não houve resposta.
Um dia antes, na quarta-feira, a Funai argumentou, em nota à imprensa, que "após mais de dez anos de sucessivas portarias de interdição da área e inúmeras incursões e sobrevoos para verificar a presença de supostos indígenas isolados na região, não foram localizados nem identificados grupos em isolamento no local".
A Funai disse ainda que os estudos em campo "foram realizados por profissionais da Funai altamente especializados, pertencentes ao corpo técnico da fundação e com ampla experiência na área" e que a última expedição "foi a maior já realizada pela instituição para localização de indígenas isolados".
"Diante disso, tendo em vista a não localização de grupos isolados após mais de uma década de monitoramento, expedições e estudos técnicos na região de Ituna/Itatá, a Funai entende que não há elementos que justifiquem a edição de uma nova portaria de interdição da área. A fundação ressalta que permanece acompanhando, de forma constante e permanente, as áreas Indígenas do interflúvio Xingu-Bacajá, nas Terras Indígenas Trincheira Bacajá e Koatinemo, não descartando a possibilidade de que os supostos indígenas isolados possam ter se deslocado para essas regiões do entorno", diz a nota.
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