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Wálter Maierovitch

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Emendar o artigo 142 da Constituição, já

Justiça e Constituição - Reprodução
Justiça e Constituição Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

17/06/2023 19h55

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Nascido na Suíça em 1767 e com cidadania francesa, o escritor e político Henri Benjamin Constant de Rebecque foi o criador e o difusor da doutrina conhecida pelo nome de "Poder Moderador".

Atenção: segundo o referido Benjamin Constant, a sua doutrina do "Poder Moderador" só era aplicável às monarquias constitucionais.

1. Deturpações bolsonarista de ocasião

Na visão do referido Benjamin Constant, o Poder Moderador competia exclusivamente ao imperador. Não pertencia às Forças Armadas.

O seu objetivo não era o de enterrar a doutrina do jus-filósofo Montesquieu, ou seja, sepultar a tripartição dos poderes do estado nacional em Executivo, Legislativo e Judiciário.

A meta de Benjamin Constant consistia, tão somente e só, em colocar o imperador, nas monarquias constitucionais, como legitimado a decidir em última instância. Isso apenas em caso de dissenso ou conflito entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Atenção, o Brasil é republicano.

A monarquia, com o poder moderador introduzido na Carta Constitucional por Pedro 1º. em 1824, restou definitivamente encerrada em 1889. Nenhuma das nossas constituições republicanas o ressuscitou.

Frise-se, o poder moderador foi excluído no Brasil com a proclamação da República. Quando em vigor, foi exercido pelos imperadores Pedro 1º e Pedro 2º. Nunca pelos militares.

No nosso atual e republicano sistema, a última palavra, em casos de dissensos, é do Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário e guardião indelegável da Constituição perante o povo brasileiro.

Para os esquecidos, criou-se até a expressão de judicialização de conflitos. Isso significa a provocação do STF para decidir questões diversas, incluída a constitucionalidades de leis e atos dados como abusivos ou com desvios de poder. Existe até o mandado de injunção, uma ação junto ao STF e quando o Poder Legislativo se descura da edição de normas reguladoras, a afetar garantias constitucionais.

Os golpistas brasileiros, incluído Jair Bolsonaro, a partir do artigo 142 da Constituição de 1988, passaram, por conveniência, a enxergar um poder moderador, atribuindo-o às Forças Armadas.

Mais ainda e numa visão bolsonarista curta, a intervenção militar poderia ocorrer nos moldes da acontecida em 1964, quando imposta a ditadura militar. A lembrar, com longos anos de duração, torturas, mortes, desaparecimentos e aniquilamentos de garantias individuais e liberdades públicas.

O conteúdo das mensagens golpistas e diálogos obtidos pela Polícia Federal em aparelho celular do coronel Mauro Cid, então ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, mostram como militares do Exército, da ativa e reformados, esposas e filhas, agarraram-se no artigo 142 da Constituição, para substituir o poder democrático pelo despótico.

E não dá, como tenta fazer Bolsonaro, para isentar-se de responsabilidade de modo a colocar um seu ajudante de ordens, golpista confesso, em recebedor de mensagens de terceiros.

O coronel Mauro Cid, já preso preventivamente, deverá ser, pelo andar da carruagem, outro jogado ao mar por Bolsonaro. De carreira militar liquidada, deverá ser condenado no esquema de falsificações vacinais. Perderá o cargo por sentença condenatória ou em processo disciplinar militar. Seu único consolo será o de possuir uma esposa igualmente antidemocrática e golpista feroz.

2. Fardas e pijamas agitados

Para os que acionavam Mauro Cid, o ajudante de ordens de um Bolsonaro que durante todo o mandato presidencial tentou dar um golpe de Estado, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF) geravam conflitos, eram parciais e tinham por meta impedir a reeleição do presidente.

Pelo roteiro e depois de consumada a intervenção militar, o interventor nomeado pelas Forças Armadas teria poderes absolutos. A ponto de cassar a diplomação do presidente Lula e de substituir três ministros do TSE pelos confiáveis Kássio Nunes Marques, André Mendonça e Dias Toffoli.

Todos os três filobolsonaristas. Os dois primeiros, de raiz. O terceiro, Dias Toffoli, uma espécie de "cristão novo", que se aproximou do então mandatário da nação e adequou-se ao bolsonarismo.

No momento, Toffoli tenta agradar Lula (até se desculpou publicamente) e já se removeu para outra Turma do STF, a abrir caminho futuro a Cristiano Zanin instalar-se em turma julgadora que não tem prevenção para os processos recursais atinentes à Lava Jato.

Sem data para acabar, competiria ao interventor designar novas eleições. Sem descartar a possibilidade de o TSE, na nova composição, anular votações e validar apenas as das urnas mais novas, que deram a vitória a Bolsonaro. Aliás, uma tese já defendida por Bolsonaro.

Como se nota, e sempre acontece em golpismos de repúblicas bananeiras, o roteiro encontrado no celular do golpista Mauro Cid procurava, com invocação ao artigo 142 da Constituição e designação de novas eleições presidenciais, dar aparência de legitimidade.

Mas, sempre seria um golpe antidemocrático, de maus perdedores. A afrontar a soberania popular que, em eleições sem fraude, deram a vitória a Lula.

3. A Constituição prostituída

Pescar um artigo dentro do sistema, dar-lhe interpretação larga, excludente e autônoma, é coisa de rábula de porta de cadeia pública de periferia.

Como declarou o saudoso Ulysses Guimarães, os constituintes prepararam e aprovaram, em 1988, uma Constituição democrática, republicana, com o sistema tripartite de poderes, harmônicos e independentes.

Quanto ao sistema dos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, adotou-se a consagrada teoria de Montesquieu. Essa distinção entre os poderes, ressalte-se, inspirou a história do Ocidente democrático.

Para conservar a liberdade, escreveu Montesquieu, é necessário que "o poder freie o poder".

Não são as Forças Armadas que, pela Constituição de 1988, freiam os poderes. Até porque elas não constituem um poder do Estado brasileiro. E estão acopladas ao poder executivo nacional, com o presidente da República na condição do seu chefe supremo.

Repito, até um bacharel reprovado em exame de qualificação profissional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sabe caber ao STF, em casos de conflito e dissensos constitucionais, dar a última palavra.

Para Rui Barbosa, cabe ao Supremo dar a última palavrar e, a brincar, emendou caber ao STF errar por último.

4. A Constituição virou o leito de Damaste

Em novembro de 2022, os comandantes das Forças Armadas soltaram uma nota-recado golpista intitulada " Às instituições e ao povo brasileiro". Sobre ela, este colunista do UOL comentou em 14 de novembro de 2022.

Essa nota revelava o quanto estavam os comandantes imbuídos do papel de membros do tal poder moderador, visto como função de salvação nacional. Ledo engano.

À época havia um clima golpista. E até o então presidente Bolsonaro reuniu diplomatas e adidos para, na sua visão de artilheiro que erra sempre o alvo, não causar, internacionalmente, futuras surpresas

O conteúdo das mensagens armazenadas no celular do seu ajudante de ordens, ou melhor, daquele sem competência para dar ordens, revelam a existência de mais um forte indício do envolvimento do ex-presidente Bolsonaro. Os atos de 8 de janeiro apontaram para, num mesmo enredo golpista, uma última tentativa de golpe contra o estado democrático de Direito.

Conta a mitologia grega a respeito de personagem de nome Damaste. Ele sequestrava viajantes ao anoitecer, na estrada de Ática. Após subtrair os seus bens, colocava-os num leito de morte.

Se o viajante fosse menor do que a cama, esticava o seu corpo e rompia-lhe articulação e ossos até que todo o espaço do leito fosse ocupado. Se o corpo fosse maior, os membros eram cortados.

Os ativos golpistas, com Bolsonaro à frente e a tentar esconder as suas digitais, procuraram transformar a Constituição de 1988 num leito de morte de Damaste.

A interpretação o artigo 142 foi esticada. Tudo valia, incluído o "Poder Moderador", para adequá-la ao leito de morte da democracia e do estado de Direito.