Bolsonaro seguirá inelegível porque há na Justiça obstáculo intransponível
O ex-presidente Jair Bolsonaro agarra-se, como alguém que está se afogando, a uma tábua de salvação. No caso, ao instituto da anistia, definida no mundo jurídico como "perpétuo silêncio".
Um "perpétuo silêncio" à tentativa de golpe de Estado, aos abusos e ilícitos perpetrados e consumados durante o seu mandato de presidente da República. Deseja, sem arrependimento algum, a clemência, com total extinção da sua responsabilidade criminal.
Não percebe, entretanto, que a "tábua da lei" não sustentará o seu peso antidemocrático. Assim, a sua pretensão de voltar a ser elegível irá afundar, ou melhor, não apagará a condição de inelegível.
O ex-presidente Bolsonaro terá, na Justiça brasileira, um obstáculo intransponível, porque ela deve atuar como guardiã do Estado de Direito.
Sem conexão
Por decisão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), em ação de investigação judicial eleitoral, Bolsonaro está inelegível por abuso de poder político, em sentido amplo.
A condenação eleitoral decorreu da abusiva convocação de embaixadores e adidos estrangeiros para um jogo de cena, de campanha eleitoral.
No abusivo encontro, Bolsonaro esperneou e sustentou, sem provas, a iminência de fraude eleitoral. A fraude, segundo colocou, ocorreria mediante o emprego de urnas eletrônicas viciadas que levariam à sua derrota na disputa à reeleição presidencial.
A "mise-em-scène", frise-se, fez parte da propaganda eleitoral. Assim perceberam as autoridades estrangeiras convocadas, e os seus países mantiveram-se em silêncio sepulcral.
Em outras palavras, a convocação dos diplomatas e adidos nada teve a ver com o 8 de Janeiro, materializado pelo emprego de golpistas, trazidos de vários cantos e utilizados como massa de manobra.
Atenção: o projeto de lei de anistia diz respeito aos atos de tentativa frustrada de golpe de Estado —atos pós-eleição, com Bolsonaro já derrotado e o novo presidente eleito empossado, no exercício da função de chefe do Executivo.
Mesmo que o projeto de anistia seja aprovado e sancionado pelo presidente Lula, nenhuma conexão poderá ser estabelecida entre um ato isolado de campanha política e outro, pós-eleição, de tentativa de golpe de Estado.
Não dá para se admitir, juridicamente, a conexão. Impossível colocar-se tudo no mesmo saco da anistia.
A doutrina penal-constitucional ensina que a anistia ampla é aplicável a ilicitudes conexas exige conexões reais, concretas. Isso não acontece no caso Bolsonaro, pois não há correlação entre esperneio de campanha perante embaixadores e adidos internacionais e o golpismo pós-eleitoral, com oposição firme e em observância à Constituição dos comandos do Exército e da Aeronáutica. Apenas o comandante da Marinha apoiou o golpe engendrado.
Pode-se até cogitar que a reunião com os convocados embaixadores e adidos internacionais fosse um embrião de golpe, na hipótese de derrota. Isso, no campo do direito criminal, não guarda relevância por referir-se a mera cogitação.
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Quero receberAnistia e velhas lições
Os espanhóis foram os primeiros a perceber que a anistia precipitada, não amadurecida pelo transcurso do tempo, pode transformar-se numa indigesta solução política. Isso sempre sucede quando ela é preparada para extinguir ilícitos eleitorais, políticos e comuns, com o falso tempero da clemência.
A revolução republicana espanhola concedeu, em 1931, anistia aos crimes políticos, sociais e de imprensa: decreto-lei de 14 de abril de 1931.
Essa anistia serviu, logo depois de implantada, para alimentar a sangrenta Guerra Civil Espanhola, que liquidou os democratas-republicanos e levou ao poder ditatorial, absoluto, o generalíssimo Franco.
Venceram os autoproclamados nacionalistas espanhóis. Aliás, o mesmo tipo de nacionalismo adotado no discurso do golpista ex-presidente Jair Bolsonaro, que se apropriou até das cores da bandeira nacional.
Carona e boquinha
Antes das eleições municipais, Bolsonaro, em entrevista, avisou que iria tratar do projeto de anistia, pois ele seria o candidato à presidência em 2026.
Para tanto, já contava com o parecer favorável à anistia dado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara. Como se sabe, uma comissão de maioria bolsonarista, presidida por Carolina de Toni (PL-SC), uma aliada raiz do ex-presidente.
Bolsonaro não contava com a manobra do presidente Arthur Lira e o jato de água fria por ele usado para baixar a pressão.
Lira criou uma comissão especial para apreciação do projeto de anistia, camuflada como sendo restrita, a fim de perdoar os processados e condenados pela tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro.
Para não demostrar abatimento em face da manobra procrastinatória de Lira, Bolsonaro esteve na Câmara no dia 29 de outubro e fingiu concordar com a ideia de Lira.
A visita, na verdade, foi para reivindicar a anistia para ele próprio. Usou, para enganar, a falsa postura de estar solidário à anistia aos processados e condenados pelo 8 de Janeiro.
Como sabe que a anistia é aplicada a fatos, e não a indivíduos, Bolsonaro quer entrar de carona. Na verdade, deseja uma "boquinha", como se diz no popular.
Para quem tiver dúvida sobre a sua real intenção, vale recordar a entrevista à revista Veja: " O candidato sou eu".
Anistia ampla
Bolsonaro não foi indiciado em inquérito e nem denunciado pelo 8 de Janeiro. Ele é investigado como suspeito no inquérito sobre o golpismo. E Bolsonaro sabe que a anistia extingue a punibilidade até de suspeitos.
Como decidiu vergonhosamente o STF (Supremo Tribunal Federal), ao se manifestar pela constitucionalidade da então lei de anistia relativa aos envolvidos no golpe ditatorial de 1964, este instituto jurídico (anistia) é amplo, geral e irrestrito.
O STF fez valer a anistia até para os torturadores da ditadura.
Com efeito, a anistia alcança processados, condenados e suspeitos, como é o caso, até agora, de Bolsonaro, em alguns inquéritos conduzidos pelo ministro Alexandre Moraes.
Perpétuo silêncio
O Brasil, na redemocratização pós-ditadura Vargas, usou do instituto da anistia. Nasceu a partir daí a máxima, materializada pela lei 1.346/51, de que a anistia representa "perpétuo silêncio".
Bolsonaro e os parlamentares pró-anistia, usam da "clemência" para com os processados e condenados pelo STF, em única e última instância.
Na verdade, os parlamentares estão apenas interessados em livrar a cara de Bolsonaro. Apenas isso. E a sanção por parte de Lula servirá aos seus planos eleitorais em 2026.
Todos no Congresso Nacional sabem bem que a anistia aplica-se a fatos amplos, e não a indivíduos. Vale dizer, seriam atingidos todos os que são vistos como envolvidos, ou suspeitos, de atentar contra a Constituição e o Estado Democrático de Direito.
Atenção: a extinção da punibilidade pela anistia não desobriga o pagamentos dos danos materiais. Bolsonaro não ficará sem colocar a mão na carteira.
Indeferimento
A competência para concessão de lei sobre anistia é do Legislativo, sujeita à sanção do presidente da República.
Pelo fato de a anistia ser genérica, cada indivíduo terá de bater à porta do Judiciário, pedindo o reconhecimento do seu enquadramento.
A anistia, assim como o indulto, têm a marca da generalidade: José Dirceu, indultado pela presidente Dilma, solicitou o enquadramento, junto ao STF que o condenou em célebre voto do ministro Joaquim Barbosa. Coube ao ministro Barroso propor aos pares a aceitação, fato acontecido.
Bolsonaro, caso se considere agraciado por anistia, terá de bater à porta do Judiciário. Aí, a sua pretensão será seguramente indeferida.
Afinal, o abuso de poder político que é a causa da sua inelegibilidade não guarda nenhuma conexão legal com o golpismo. Como se diz no popular, a cueca não tem a ver com as calças.
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