'Eles são preparados para matar', diz mãe de jovem morto por PM no Rio
Antes da morte do filho, uma das 244 vítimas de homicídios em decorrência de intervenção policial ocorridos na cidade do Rio de Janeiro no ano passado, a pedagoga Ana Paula de Oliveira, 38, costumava concordar quando alguém comentava que os PMs do Rio são despreparados.
"Eu sempre ouvia as pessoas falando que essas coisas acontecem por causa do despreparo deles. Mas hoje eu tenho certeza: eles não estão despreparados. Eles são preparados para matar, para oprimir. É isso que eu vejo todos os dias", afirma Ana Paula, moradora do complexo de favelas de Manguinhos, na zona norte da capital fluminense, desde que nasceu.
Johnatha de Oliveira Lima, 19, foi morto com um tiro nas costas disparado por um PM no dia 14 de maio de 2014, ano em que o número de ocorrências deste tipo cresceu pela primeira vez desde 2007. A observação e o caso do jovem estão presentes no relatório “Você matou meu filho”, estudo da Anistia Internacional sobre violência policial no Rio lançado no início desta semana.
Uma das conclusões do relatório foi que os homicídios cometidos por PMs no Rio tendem a ficar impunes, por conta da omissão do Ministério Público e de falhas na investigação da Polícia Civil, entre outros fatores.
Pouco mais de um ano e dois meses após a morte de Johnatha, a mãe do jovem se diz determinada em fazer o que for preciso para evitar que o policial que atirou no filho fique sem punição como tantos outros agentes de segurança do Rio.
"Eu não pude ter meu luto. A gente tem que sair da dor para lutar por justiça. Eu quero o mínimo. Eu exijo. Porque mesmo se o meu filho fosse um bandido, como eles quiseram fazer parecer ser, aqui no Brasil não temos pena de morte. Mas na verdade existe, implicitamente, apesar de não estar escrito na lei", declarou Ana Paula.
O PM apontado como autor do tiro que matou Johnatha, Alessandro Marcelino de Souza, que na época estava lotado na UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) de Manguinhos, foi denunciado pelo MP em agosto do ano passado. O caso foi investigado pela DH (Divisão de Homicídios). Na época, a Polícia Militar afirmou que o jovem estaria participando de um protesto de moradores e era suspeito de atacar a tiros uma base avançada da UPP situada na favela da Coreia.
Para a mãe do jovem, a polícia já tem um texto pronto "para dar legalidade aos assassinatos". "Isso tem que acabar. O caso só foi esclarecido e o policial foi identificado graças ao clamor dos moradores, que já não estavam mais aguentando a violência da PM e conheciam a índole do meu filho. Eles foram para a delegacia, falaram o que tinha ocorrido e o delegado acionou a Divisão de Homicídios. Por causa deles, o caso do meu filho está hoje no Tribunal de Justiça", comentou.
Justiça e impunidade
No dia da primeira audiência, em 9 de fevereiro deste ano, ela ficou sabendo que o policial não seria julgado pela primeira vez. Alessandro é réu em outro processo, por três homicídios e duas tentativas cometidos em março de 2013, em Queimados, na Baixada Fluminense. Ele e outro PM chegaram a ser presos um mês depois, mas foram libertados em seguida.
"Quando eu soube que ele já havia sido indiciado por outros crimes e continuava solto e trabalhando, eu pensei: ‘é aí que está o problema’. Não sei mais quantos crimes ele já pode ter cometido, mas o que eu tenho certeza é que ele está impune. Isso fortalece que eles continuem matando", reclama a pedagoga. "O que me move hoje não é vingança. Eu não desejo nunca que esse homem sinta a dor que eu estou sentindo hoje".
Ela conta que chegou a encontrar o PM em Manguinhos algumas vezes depois da morte de Johnatha. "Era uma sensação muito ruim. Eu, enquanto mãe, me sentia impotente de ver aquela pessoa que tirou a vida do meu filho livre. Se tivesse sido ao contrário, meu filho não ia ter nem voz. Ele já estaria preso, esperando, como qualquer outro morador de favela. A gente sabe que eles primeiro prendem para depois investigarem. Isso cria uma revolta dentro do meu coração. O que eu desejo é que a Justiça mostre que também está do lado da gente. Porque ela só aparece na favela quando é para prender."
Segundo a PM, o militar está sendo submetido a Processo Administrativo Disciplinar e sua permanência ou demissão do quadro da coorporação será avaliada após a apuração. Alessandro Souza foi transferido para o 24º BPM (Queimados) e está trabalhando na área administrativa aguardando a conclusão do processo. A reportagem ligou para o batalhão para tentar falar com o policial, mas ninguém atendeu os telefones.
"Pacificação"
Manguinhos ganhou uma UPP em janeiro de 2013. Para Ana Paula, o projeto de pacificação do Governo do Estado é, por princípio, mentiroso. "Na minha opinião, a favela não precisa ser pacificada. Quem ter que ser pacificada é a Polícia Militar. Porque é uma instituição que foi criada para matar e oprimir", declarou. "A favela precisa ter acesso aos direitos básicos: educação, saúde, saneamento, cultura. Muitas crianças nunca foram ao cinema ou ao teatro".
As críticas não param por aí. "A sociedade, uma boa parte dela pelo menos, que sempre bate palmas quando vê os corpos estirados no chão na favela também é responsável. Diferentemente do asfalto, de quem tem dinheiro, influência, na favela, até que se prove o contrário, a pessoa é bandida, é criminosa, é marginal. Isso tem que começar a mudar. A sociedade tem que ter consciência de que esse pensamento legitima essas mortes. Que ela também tem culpa", afirmou.
Também mãe de uma menina de 10 anos, Ana Paula diz pensar na filha ao lutar pelo fim da impunidade de policiais. "Ela, como eu ou qualquer morador de favela, pode ser uma vítima a qualquer momento. Somos criminalizados desde que nascemos. Mas a culpa não é nossa. Se a gente pudesse dar um lugar melhor para os nossos filhos morarem, com certeza daríamos, é o sonho de todo mundo".
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