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Índios lamentam tragédia em MG: 'O rio Doce sabia que ia ser morto'

Gustavo Maia e Marcela Sevilla

Do UOL, em Resplendor (MG)

19/11/2015 17h04

Para os indígenas do povo krenak, o rio Doce era muito mais que fonte de água.

Com a chegada da onda de lama de rejeitos da mineradora Samarco ao município de Resplendor, em Minas Gerais, na semana passada, as 126 famílias que vivem na aldeia, às margens do manancial, testemunharam a “morte” de um elemento fundamental da cultura das tribos.

“Muitos aí fora acham que o rio é só água e peixe, mas para nós era a fonte de sobrevivência e uma questão de cultura. Desde o início dos nossos antepassados, o rio Doce mantém nosso povo. É questão de religião, é sagrado. Mas agora ele está morto.”

O desalento no relato do cacique Leomir Cecílio de Souza, 30, da tribo atorã, permeia os depoimentos de todos os integrantes do povo indígena ouvidos pela reportagem. “O rio era tudo para a gente. O que a Vale e a Samarco fizeram destruiu o povo krenak”, declara Potiara Félix, 32.

Como forma de protesto contra a poluição da bacia hidrográfica, causada pelo rompimento de barragens em Mariana (MG), dezenas de indígenas da aldeia bloquearam, na última sexta-feira (13), a Estrada de Ferro Vitória a Minas, que escoa a produção da mineradora Vale, uma das controladoras da Samarco.

"Antes do protesto, nós tentamos um diálogo pacífico com os representantes da Vale, mas não fomos correspondidos. A gente não tinha outra saída. Ninguém estava nos ouvindo", conta Leomir. “Nós ficamos revoltados vendo o nosso rio morrer. Por isso fomos à luta”, diz Tatiana Krenak, 34, que levou o filho de dois anos, Teuat, para a linha do trem.

Três dias depois, em reunião com representantes da multinacional, a comunidade indígena aceitou desbloquear a ferrovia. Segundo os krenak, a empresa prometeu pagar nove salários mínimos (R$ 7.092) mensais a cada família por um período prorrogável de pelo menos quatro meses, além de fornecer água para consumo humano e animal, construir uma cerca ao longo da margem do rio e 120 cisternas na área.

“Mas não tem dinheiro que pague a riqueza que a gente tinha. O rio acabou e não vai mais voltar. É triste demais. Tudo o que nós queríamos, a gente conseguia lá. Tiraram essa alegria da gente”, ressalta Mauro Krenak, 36, caçador e pescador da tribo.

As atividades que sempre esteve acostumado a fazer agora serão substituídas por idas a supermercados de Resplendor. “Não é a mesma coisa”, comenta. Irmã de Mauro, Tatiana reclama que os peixes vendidos no comércio, pescados no mar, não têm o mesmo gosto dos animais do rio Doce.

A Vale foi procurada pelo UOL para se pronunciar sobre a negociação, mas não respondeu até o momento. A Funai (Fundação Nacional do Índio) confirmou os termos do acordo.

Nesta quarta (18), a reportagem presenciou a chegada dos primeiros galões e caixas d’água à área indígena, situada em local de difícil acesso a 9 km da BR-259.

"Até agora a gente estava tendo que brigar com os animais para pegar água de dois córregos das redondezas", conta Mauro.

A Funai informou que o apoio emergencial da Vale “não exime a empresa da responsabilização pelos danos ambientais e sociais causados, que terão ainda sua extensão apurada”.

Sinais sagrados

Na cultura dos krenak, o rio Doce tinha vida própria. Um dia antes da chegada dos rejeitos de minério em Resplendor, os indígenas disseram ter percebido sinais de que ele estava perto do fim.

"O rio já sabia que ia ser morto. Quando a sujeira veio, ele foi subindo chorando, fazendo barulho. E minha mãe chorando junto. Até hoje ela ainda não foi ver o rio", descreve Tatiana, que é filha da cacica Laurita Maria Félix Krenak, 80, a mais velha da tribo.

“Parece que os peixes estavam até adivinhando que iam ser mortos. Meu marido foi pescar e em 15 minutos pegou muitas tilápias. Deu para a família toda comer e até hoje eu tenho uma guardada no freezer, só de lembrança, porque agora não tem mais como”, conta Potiara, também filha de Laurita.

O rio Doce é tema de antigas canções na língua krenak, que elogiam sua beleza e a fatura de alimentos proporcionada por suas águas. "Agora não dá nem mais vontade de cantar essas músicas. Para nós elas já morreram", diz Tatiana.

Criados desde pequenos no leito do rio, os adultos da aldeia lamentam que as próximas gerações provavelmente não terão a mesma oportunidade. "Nossos filhos não vão aprender a nadar aqui como a gente aprendeu", afirma Potiara.

Enquanto tentava trocar as caixas d'água da casa da mãe, Mauro não conteve as lágrimas ao falar sobre a transformação recente do rio. "É muito difícil olhar para ele desse jeito. Nós perdemos nossa liberdade".