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Calamidade no Rio: "hoje insegurança é modo de vida", diz ex-titular da Segurança

Policiais invadiram a Alerj durante manifestação contra o pacote de medidas de austeridade proposto pelo governo - Fotoarena/Ag. O Globo
Policiais invadiram a Alerj durante manifestação contra o pacote de medidas de austeridade proposto pelo governo Imagem: Fotoarena/Ag. O Globo

Paula Bianchi

Do UOL, no Rio

09/11/2016 06h00

O cerco e a posterior invasão da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) por milhares de policiais civis e militares, além de integrantes do Corpo de Bombeiros e agentes penitenciários, na tarde desta terça-feira (8) são, para especialistas ouvidos pelo UOL, o ápice de uma situação na qual o Rio se vê mergulhado há tempos e que prenuncia um 2017 ainda mais sombrio para o Estado em todas as áreas.

Professor da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e também sujeito aos cortes propostos pelo governo do Estado que preveem, entre outras medidas, a elevação da contribuição previdenciária de servidores ativos, inativos e pensionistas para 30% dos salários, o ex-secretário de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares se diz "solidário" ao protesto dos policiais. "Nunca vivi nada parecido nos meus 62 anos. Já houve atrasos, crises fiscais… Não sei até onde isso pode nos levar", afirma.

Para Soares, a ato realizado pelos policiais mostra quão grave é a crise, uma vez que essas categorias raramente se mobilizam. "A insegurança transcendeu os limites [da segurança pública]. Hoje a insegurança é o modo de vida. É a atmosfera que se respira no Estado no sentido mais amplo. Os servidores não sabem se vão receber, as pessoas temem ficar sem emprego, os empresários vivem a realidade de não serem pagos... É um ciclo vicioso em progressão geométrica."

Especialista em segurança pública e professor do Laboratório de Violência da Uerj, Ignácio Cano também vê risco para todo o funcionamento do Estado. "Policiais, como qualquer servidor público, têm todo o direito a se manifestar. No caso da polícia, como tratam-se de servidores com acesso a armas, eles não podem usar a força, pois assim perdem a razão, precisam seguir um protocolo", afirma.

Se você não paga os funcionários, você desmantela todo o serviço público.

Ignácio Cano, professor da Uerj

Os dois concordam que a tendência é que a situação se agrave. "A segurança pública já vivia uma crise muito grave, tudo tende a piorar", diz Soares. "O prognóstico [para o próximo ano] não é favorável devido às condições do Estado. O Rio tem que conseguir sair pelas suas próprias pernas, não pode infinitamente pedir ajudar federal", diz Cano, ao citar os pedidos de ajudar à União para reforço no policiamento feito durante as Olimpíadas e as eleições.

Soares vai ainda mais longe e, assim como os policiais, defende a renúncia do governador, Luiz Fernando Pezão (PMDB), e de seu vice, Francisco Dornelles (PP), e uma "repactuação" da dívida do Estado.

Coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Michel Misse lembra que os problemas da segurança são anteriores ao pacote de austeridade.

"A segurança já está em crise, os problemas principais não decorrem da crise do Estado, existiam antes. São fruto de uma política que estava caminhando de forma bem-sucedida e foi deixada de lado, que é a política das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora)", afirma.

O programa de implantação de UPPs estancou nos últimos dois anos. Desde 2014, nenhuma unidade foi inaugurada. Até mesmo as consideradas prioritárias, como as UPPs no Complexo da Maré, tiveram a implantação cancelada.

19 DP Rio - Alfredo Mergulhão/Colaboração para o UOL - Alfredo Mergulhão/Colaboração para o UOL
O banheiro da delegacia da Tijuca não tinha papel higiênico, sabonete e papel toalha
Imagem: Alfredo Mergulhão/Colaboração para o UOL

Sem verba até para comprar água, papel higiênico e mesmo tinta para impressão de boletins de ocorrência, na semana passada a Polícia Civil lançou um edital para que a sociedade civil possa fazer doações à instituição. Em outubro, o então secretário de Segurança José Mariano Beltrame renunciou ao cargo alegando, entre outros fatores, o corte de recursos para sua pasta.

A Polícia Civil reduziu em 56,7% os gastos com materiais de consumo entre 2014 (último ano da gestão Cabral) e 2016. Os gastos incluem a aquisição de papel, artigos para limpeza e higiene, combustível para os carros e produtos químicos usados em perícias. 

Durante as Olimpíadas, um grupo de policiais civis se organizou para receber os turistas que chegavam à cidade pelo aeroporto internacional do Galeão, na Ilha do Governador, com uma faixa com os dizeres, inglês: "Bem-vindo ao inferno. Policiais e bombeiros não são pagos. Qualquer pessoa que vier para o Rio não estará segura". Nesta terça, pouco antes de invadir a Alerj, os policiais gritavam, em uníssono, “acabou o amor, isso aqui vai virar o inferno”.