Presos seguem as próprias regras, dizem agentes penitenciários de 6 Estados
Os recentes massacres de presos no Norte do país jogaram luz sobre a rotina de um grupo que sofre com as condições precárias do sistema carcerário brasileiro: os agentes penitenciários. Ao UOL, oito profissionais de seis Estados relataram uma rotina de medo, insegurança e falta de estrutura para trabalhar. Por temor de represálias, sete deles só aceitaram dar entrevista sob condição de não ter o nome revelado.
O Conselho Nacional de Política Criminal, do Ministério da Justiça, recomenda a média de cinco presos por agente. No entanto, os depoimentos ouvidos pela reportagem mostram que há escassez de carcereiros e superlotação de criminosos, combinação que faz com que os presos não se sujeitem às regras das unidades e a sensação de segurança seja nula.
Segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e de governos estaduais, todas as unidades prisionais citadas neste texto estão superlotadas. Também por essa razão, em vez de servirem para punição e ressocialização de infratores, as unidades prisionais viram locais onde bandidos cometem novos delitos e recrutam mais integrantes para facções criminosas.
Eles fazem o que eles quiserem, quando eles quiserem e na hora em que eles quiserem. Você fica preso sem estar preso."
Agente do Rio de Janeiro
"Nossa segurança é Deus"
No cotidiano descrito pelos agentes, a insegurança é total em lugares onde, em teoria, os criminosos estariam neutralizados. Dois agentes do Rio de Janeiro contaram que já viram colegas serem agredidos por detentos. No Complexo do Curado, no Recife, presos ficam com as chaves das celas e teriam mais armas que os agentes de plantão. No Amazonas, onde 64 presos foram assassinados em rebeliões este ano, até as algemas necessárias para o transporte de presos estariam em falta.
“A nossa segurança é puramente Deus”, diz um agente do Rio.
As condições físicas de algumas unidades também são um risco para os agentes. Um agente da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, diz que o isolamento tem um jeito fácil de ser burlado: com água. No dia 6, 33 presos foram mortos por outros detentos dentro da unidade prisional.
“Por ser uma construção antiga, os detentos conseguem facilmente derrubar uma parede. Eles sabem que é só molhar a estrutura para conseguir abrir buracos entre as alas. É um tijolo feito de barro”, disse.
Os agentes também são alvos frequentes de intimidação. Ao longo do tempo, presos passam a dizer que sabem detalhes de suas vidas pessoais.
“Às vezes você mora numa região em que você encontra parentes de presos, até presos que você viu criança. Eles passam informações. A gente vive sob pressão. Somos uma presa muito fácil”, conta um agente do Rio.
"Me sinto zero seguro, principalmente com a superlotação", afirma um agente de São Paulo. "A gente fica receoso de qualquer hora acontecer alguma coisa, porque é a gente que vai ficar com a faca no pescoço."
O vice-presidente do Sinspeam (Sindicato dos Agentes Penitenciários do Amazonas), Antônio Jorge Santiago, há mais de 30 anos na profissão, diz que seu cargo é o de “refém pago pelo Estado”.
Nós não somos heróis. Todo mundo sente medo, principalmente. O medo impera."
Antônio Jorge Santiago, vice-presidente do Sinspeam
Sem mão de obra para fiscalizar
Segundo os relatos, é comum que algumas dezenas de agentes desarmados vigiem centenas de detentos, além do entra e sai de visitantes, materiais e alimentos. Isso abre espaço para que os presos determinem regras próprias para o que pode ou não ser feito dentro de uma unidade prisional.
"Tem presídios com 3.000 pessoas e um efetivo de oito, nove, dez pessoas trabalhando em um dia bom", diz um agente do Rio de Janeiro.
Segundo o Sindasp-PE (Sindicato dos Agentes e Servidores do Sistema Penitenciário de Pernambuco), há em média 12 agentes por plantão para quase 7.000 detentos no Complexo do Curado, no Recife.
Um agente que trabalhou no Instituto Penal Vicente Piragibe, no Rio, diz que os presos da unidade consomem drogas e usam celulares livremente. Já de acordo com um agente do Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), em Manaus, unidade onde houve o massacre de 56 presos entre os dias 1º e 2, os presos rasgam as páginas dos livros de ocorrências dos pavilhões, onde são registradas as infrações cometidas pelos detentos – como ameaças de morte e ofertas de propina em troca da entrada de objetos proibidos, entre eles drogas, bebidas alcoólicas, celulares e armas.
O ingresso destes itens em presídios é constante, dizem os agentes ouvidos pelo UOL. Para eles, uma brecha reside na falta de mão de obra para fiscalizar a quantidade de alimentos que entra nas cadeias.
“Você vê os colegas na portaria, entra caminhão para levar comida para 3.000 presos. Você consegue verificar 3.000 quentinhas? Não há como. Os visitantes agora foram autorizados a entrar com três bolsas. São 300 por dia. Como revistar uma fila de 300 pessoas em um, dois agentes?”, diz um carcereiro do Rio.
Segundo o agente do Compaj ouvido pelo UOL, nos dias que antecederam o massacre na unidade, “entrou muita comida” sem passar pelos aparelhos de raio-X.
No Recife, os muros baixos do Complexo do Curado e a proximidade de áreas residenciais possibilitam o simples arremesso de objetos ilícitos para dentro da unidade, embalados no tamanho certo para que consigam ultrapassar a tela de proteção.
"Uma vez que você aceita (propina), é para o resto da vida"
Em paralelo, detentos tentam corromper agentes para que permitam a entrada de drogas e armas, principalmente. As ofertas podem chegar a R$ 100 mil, de acordo com o agente de São Paulo.
“Eles sabem quem presta e quem não presta”, diz o agente do Compaj. “Uma vez que você aceita, é para o resto da vida. No dia em que você se recusar, quando tiver uma rebelião, os caras são capazes de te matar. Se você já se corrompeu uma vez, vai ficar com medo de que te dedurem e vai querer fazer.”
“O correto seria fazer um boletim de ocorrência e colocar o preso para responder disciplinarmente, levar a um juiz de execução penal. Só que, quando ele voltar, a gente corre mais perigo”, afirma o vice-presidente do Sinspeam, Antônio Jorge Santiago.
Para o agente do Complexo de Pedrinhas, no Maranhão, os baixos salários também deixam os carcereiros vulneráveis à corrupção. O local foi palco do assassinato de 60 presos ao longo de 2013.
Você paga R$ 1.500 para um auxiliar penitenciário, que ainda tem desconto nesse salário. Tem que ter muita personalidade para não se corromper."
Agente do Maranhão
"Se for para acontecer uma rebelião, vai ser agora"
O descontrole nas unidades faz com que o risco de rebelião seja sempre considerado iminente pelos agentes. A contagem de presos e a abertura e fechamento de celas são momentos de grande tensão no cotidiano dos carcereiros.
“Você pensa: ‘Se for para acontecer uma rebelião, vai ser agora’”, diz um agente do Rio.
Mesmo assim, os agentes conseguem notar sinais de que um motim está de fato próximo. No Compaj, é o silêncio no lugar do barulho normal das conversas entre detentos. Em Roraima, ao contrário, um indicador de risco é o aumento das reuniões entre internos.
Em Pernambuco, segundo o agente do Complexo do Curado, os presos fazem armadilhas. Algumas são voltadas para distrair a segurança; outras são “iscas” para atrair agentes e fazê-los de reféns --uma delas é o assassinato de detentos.
“Eles simulam brigas em determinado pavilhão para que a guarda se desloque toda para lá, e na verdade estão armando [uma rebelião] no pavilhão diferente. Tem também certos barulhos em celas para chamar a atenção para irmos revistar, e não é naquele lugar que eles vão começar a se amotinar.”
"País está dividido em facções"
Segundo os agentes, de forma tácita ou explícita, o Estado reconhece a necessidade de separar os presos de acordo com a facção criminosa da qual fazem parte.
“Quando o preso entra, se pergunta em qual região ele mora, a qual facção ele pertence, mas não é oficial. Não entendo por que isso não é feito de forma clara, o país está dividido em facções”, diz um agente do Rio.
Em Roraima, o detento que não integra uma facção é ameaçado para fazer parte de uma delas. “Ele acaba entrando [na facção] para continuar com vida”, diz um agente do Estado.
No Amazonas, a alternativa para os presos que querem fugir das facções é aderir a outro tipo de agremiação.
“Eles vão para o lado dos evangélicos”, diz Santiago, do Sinspeam.
O que fazer?
Os agentes ouvidos pelo UOL são unânimes ao dizer que é necessário ampliar o número de profissionais, já que o atual é insuficiente para garantir a segurança deles e dos presos. Outras medidas sugerida por eles são a construção de novos presídios e o uso do escâner corporal, “pois nem tudo o detector de metal reconhece”, diz o agente de Pernambuco.
O vice-presidente Sindicato dos Agentes Penitenciários do Amazonas, Antônio Jorge Santiago, também defende a criação de uma polícia penal, o que daria aos agentes o poder de polícia. A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 308, de 2004, contém a proposta e está pronta para votação na Câmara desde março passado.
Para Raquel da Cruz Lima, coordenadora de pesquisa do programa Justiça Sem Muros, do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), os agentes estão junto com os presos “no mesmo bolo de negligência com o sistema penitenciário”. No entanto, segundo ela, a criação de uma polícia penal aumentaria o risco de conflitos nas prisões, e uma solução depende da revisão da atual “política de encarceramento em massa”.
“Existe uma imagem de que os movimentos de direitos humanos, agentes, policiais, têm agendas incompatíveis. A mudança no encarceramento em massa melhora os direitos de todos”, afirma.
A opinião de Raquel é similar à do agente do complexo de Pedrinhas, do Maranhão, que cita o alto número de presos provisórios no país.
“É preciso um programa de desencarceramento. Todos os conflitos do país, a Justiça manda para a prisão. Tem que ter também ter um programa de reinserção.”
No entanto, de acordo com um agente do Rio, o interesse na gestão do sistema penitenciário é de “manter aquilo calmo” em vez de prestar um serviço de qualidade.
“As pessoas tratam as prisões com muito amadorismo, como se fossem um depósito de seres humanos.”
Outro lado
A Seap-RJ (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro) informou que as prisões fluminenses abrigam 51.113 presos, sendo 21.450 provisórios em um sistema com capacidade para 27.242 detentos. O órgão não respondeu a perguntas sobre o cotidiano dos detentos, as facções e o número escasso de agentes penitenciários, alegando “medidas de segurança”. Segundo a secretaria, uma unidade prisional será inaugurada em Resende, no Sul Fluminense, este ano, e outra está em construção na capital, além de haver verba federal para a construção de mais uma unidade.
A Umanizzare, empresa que gere o Compaj, em Manaus, diz que não emprega agentes penitenciários, mas “agentes de socialização”. A profissão não consta da CBO (Classificação Brasileira de Ocupações). A empresa diz usar como base para seu contrato a categoria 5173-15 da CBO -- justamente a que descreve o trabalho de agente penitenciário.
A Umanizzare afirma contar “com quadro de colaboradores suficiente para executar o seu trabalho, de acordo com o dimensionado pelo poder público em contrato”. Sobre as denúncias de entrada de objetos proibidos no Compaj, a companhia diz que “a política de revistas é uma definição única e exclusiva do Poder Público”, que tem “total e absoluto poder de comando sobre a unidade prisional, conforme os preceitos legais.” A Umanizzare diz que, sempre que recebe “alguma determinação que acredita ter o potencial de colocar em risco a segurança, a operação, ou criar privilégios contrários às medidas de reeducação da empresa", alerta o governo do Estado por ofício e pede providências imediatas.
Questionada por e-mail na quarta (11), a Seap-AM (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Amazonas) não respondeu o UOL sobre as denúncias feitas pelos agentes ouvidos pela reportagem. Na sexta (13), o secretário Pedro Florêncio pediu exoneração e foi substituído pelo tenente-coronel da Polícia Militar, Cleitman Rabelo Coelho.
Segundo a Sejuc-RR (Secretaria de Justiça e Cidadania de Roraima), os processos de licitação de dois novos presídios estão em andamento e “já foi encaminhado para empenho o processo de reforma da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo”. O órgão também disse que deve retomar obras nos presídios de Rorainópolis e Boa Vista, cujas vagas devem zerar o déficit existente atualmente.
A secretaria também anunciou a realização de concurso público para contratação de 300 agentes penitenciários e que usará verba federal para comprar máquinas de raio-x, armas e viaturas. Ainda de acordo com a Sejuc-RR, “desde o dia 6 de novembro de 2016 as facções estão em presídios separados”.
De acordo com a Seres-PE (Secretaria Executiva de Ressocialização de Pernambuco), “ações de reforço na segurança das unidades prisionais do Estado são permanentes”. O órgão citou a compra de 18 equipamentos de raio-x e a colocação de alambrados que ampliaram em seis metros a altura do muro do Complexo do Curado. A secretaria também disse ter autorização para realizar, neste primeiro semestre, um concurso para a contratação de 200 agentes penitenciários.
(*Colaborou Marcos Sergio Silva, de São Paulo)
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