Quatro anos depois, abandono e revolta mobilizam pais e sobreviventes da Kiss
A auxiliar de contabilidade Aline Maia, 32 anos, enfrenta uma dura rotina médica: tomar pelo menos oito medicamentos por dia para minimizar as frequentes crises de asma e os distúrbios psicológicos provocados pelo cianeto, inalado na madrugada de 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria. Nessa madrugada, a festa em que ela e o marido se divertiam se transformou, em segundos, numa das piores tragédias do país, com um saldo de 242 pessoas mortas e 636 feridos – Aline entre eles.
Quatro anos depois do incêndio da boate Kiss, familiares de vítimas e sobreviventes da catástrofe relatam um cotidiano de abandono, descaso e revolta: as promessas de ajuda e proteção por parte do Estado não se concretizaram; até agora, ninguém foi punido pelo incêndio e os quatro réus do processo criminal aguardam julgamento em liberdade. Além disso, quatro pais que perderam os filhos no incêndio estão sendo processados pelos promotores que atuam no caso sob acusações de injúria, difamação e falsidade ideológica.
Aline não ficou com sequelas visíveis da tragédia, apesar de ter sido pisoteada durante a tentativa de fuga e de ter sido arrastada para fora, mas sentirá os efeitos do cianeto pelo resto da vida. Ela ficou afastada do trabalho por mais de três anos devido a crises respiratórias agudas e frequentes.
Desde setembro de 2016, quando as crises ficaram mais espaçadas, a auxiliar de contabilidade conseguiu retomar o emprego numa autoescola de Santa Maria.
Mas os remédios, que deveriam ser disponibilizados gratuitamente pelo sistema público de saúde, nunca chegaram. “Se não comprar, fico sem a medicação. Nem ganhando na Justiça conseguimos obter os remédios na rede pública”, diz a sobrevivente. Apenas uma caixa do antidepressivo Venlafaxina, com doses suficientes para um mês custa, R$ 215.
O marido de Aline, Francisco Pinto, conseguiu escapar antes que a fumaça tóxica tomasse conta do ambiente. “Minha família está dilacerada. Nossa filha, que tinha sete anos na época do incêndio, ainda não tem a dimensão exata do que ocorreu naquela noite. Muitas vezes, voltou chorando da escola com as notícias que recebia de professores e colegas”, lembra Francisco. Aline tem até hoje pesadelos e acorda sem ar. O casal pensou em sair de Santa Maria, mas concluiu que não seria uma solução. “A tragédia está nas nossas cabeças”, justifica Aline.
Prometidos pelos governos federal, estadual e municipal, os remédios gratuitos seriam uma forma de compensar a exposição de Aline ao gás mortal que tomou conta da boate Kiss depois que a espuma de isolamento acústico pegou fogo, devido a uma imperícia de um músico com um sinalizador incandescente. Desde que a boate foi incendiada, porém, que os sobreviventes e os pais das vítimas lutam para conseguir o que foi assegurado num convênio de fevereiro de 2013, com a criação do Ciava (Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes).
O centro deveria se tornar uma referência estadual na área de atendimentos emergenciais, mas quatro anos depois virou uma estrutura que registra menos de 2 mil atendimentos – quando foi criado, foram 7 mil.
Aline – que ficou 30 dias internada, nove dos quais na UTI do Hospital Universitário de Santa Maria – teve sorte de sair com vida da Kiss, apesar das sequelas.
Vitória Dalcorso, que acabara de completar 22 anos, não conseguiu escapar. A mãe da jovem estudante, Vanda, 54 anos, também reclama da falta de atenção das autoridades em relação às promessas de acolhimento e de apoio psicológico, ou mesmo material.
Somos um barco à deriva”
Vanda, dona de casa, que toma medicamentos diários para conter a depressão com a perda trágica da filha
Carina Correa, 43 anos, que perdeu a filha Thanise, e Jacqueline Malezan, 50 anos, que perdeu Augusto, estão no mesmo barco à deriva de Vanda. Todas precisam pagar pelos remédios que deveriam ser distribuídos de graça e que deveriam, também, ajudá-las a enfrentar o luto com a morte trágica de seus filhos. “Me sinto envergonhada”, resume Jacqueline.
A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria conseguiu minimizar o problema com a formalização de um convênio envolvendo uma rede de farmácias do município. Pelo acordo, a empresa permite a retirada de uma quantidade limitada de medicamentos básicos para um grupo cadastrado de pais, que não tem condições de arcar com a compra dos remédios. É uma solução paliativa. “Não resolve o problema, mas ajuda. O que não podemos é ficar passivos diante da destruição de tantas famílias”, diz o presidente da associação, Sérgio da Silva. A 4ª Coordenadoria Regional de Saúde diz que 78 pacientes relacionados ao incêndio da Kiss ingressaram com processo judicial para requerer os medicamentos, mas reconhece que apenas três retiram os remédios. Outros cinco processos continuam abertos.
Mais pesadelos e processo de injúria
Marta Mourão Beuren, 66 anos, também tem pesadelos com a morte do filho Silvio, que na época da tragédia tinha 31 anos – ela conta que o corpo do rapaz foi encontrado de pé, atrás da porta de um dos banheiros da boate, provavelmente numa tentativa desesperada de se proteger da fumaça mortal de cianeto e fugir da avalanche de pessoas que tentava escapar pelas janelas lacradas dos sanitários. Mas o pesadelo mais urgente da vida da professora aposentada tem dia e hora marcados: 7 de fevereiro de 2017, às 14h. É a primeira audiência do processo que Marta responde na Justiça por injúria, difamação e falsidade ideológica, movido contra ela pelo promotor aposentado João Marcos Adede y Castro.
João Marcos era promotor na época em que a boate Kiss enfrentou problemas de licenciamento – especialmente em relação ao Termo de Ajuste de Conduta movido pelo Ministério Público em razão da poluição sonora – e deixou a 2ª Promotoria Especializada de Santa Maria em outubro de 2010. A Kiss começou a funcionar, de forma clandestina, em 31 de julho de 2009. O filho de João Marcos, Ricardo Schultz y Castro, que também é autor do processo contra Marta, passou a atuar como advogado da empresa Santo Entretenimento, dona da boate, em julho de 2011. Segundo a professora, ela listou esses fatos em um artigo publicado na imprensa local. “Tenho a consciência tranquila de que não ofendi nem difamei ninguém, apenas transmiti informações”, defende-se.
Outros três pais de vítimas da tragédia de Santa Maria, além da professora Marta, estão sendo processados pelos promotores que atuam no caso. O promotor Ricardo Lozza está processando o presidente da associação, Sérgio da Silva, e o vice-presidente Flávio Silva. Os promotores Maurício Trevisan e Joel Dutra, por sua vez, movem processo contra o assessor jurídico Paulo Carvalho. Todos estão sendo acionados por terem feito críticas à conduta do órgão que, segundo eles, protegeu os agentes públicos da prefeitura de Santa Maria de uma investigação sobre responsabilidade no incêndio.
“Tenho medo, vergonha e insegurança, além de um sentimento de mal-estar com essa situação. Não sou mais criança, perdi um filho de forma cruel e injusta, e tenho direito de buscar a verdade sobre o que ocorreu e de pedir a punição dos responsáveis”, diz a professora. A ação por danos morais pede indenização e retratação pública. Contatado pela reportagem do UOL na tarde desta quinta-feira (26), o promotor João Marcos afirmou que não daria declarações sobre o caso.
A impunidade, aliás, é a maior fonte de revolta e indignação de pais e sobreviventes da tragédia. Os quatro réus do processo criminal estão aguardando o julgamento em liberdade – os acusados ficaram pouco mais de quatro meses em prisão preventiva. Em julho do ano passado, o juiz Ulisses Louzada de Abreu, que cuida do caso na comarca de Santa Maria, determinou a realização de júri popular contra os réus, mas os advogados de defesa ingressaram com recurso e a ação está em análise no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Não há data prevista para uma decisão.
O único sentenciado até então foi o ex-chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros de Santa Maria, major Gerson da Rosa Pereira. O militar foi condenado a seis meses de detenção por fraude processual ao adulterar documentos do inquérito policial que investigou as causas do incêndio. Mais uma vez, o réu recorreu da decisão e a sentença ainda não foi aplicada.
No âmbito administrativo, nem uma investigação sequer foi realizada pela prefeitura de Santa Maria – que tinha responsabilidade sobre as licenças de funcionamento da boate. Na quarta-feira (25), a associação ingressou com uma petição junto à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos para responsabilizar o Estado brasileiro pela violação dos direitos à vida, à integridade física, à liberdade e segurança, à honra, à proteção à família e à proteção judicial. Os pedidos de responsabilização são contra a prefeitura de Santa Maria, o Corpo de Bombeiros do estado e o Ministério Público, que retirou do inquérito policial as denúncias por improbidade administrativa contra servidores e gestores públicos da cidade, incluindo o prefeito na época do acidente, Cézar Schirmer (PMDB) – atual secretário e Segurança Pública do Rio Grande do Sul.
Segundo levantamento do Instituto Juntos, que ingressou com a petição, a boate Kiss não funcionou nem um dia dos seus três anos e meio de existência com todas as licenças necessárias em dia. Foram sete meses sem alvará de localização, 17 meses sem plano de prevenção de incêndio, 20 meses sem licenciamento ambiental e 31 meses se alvará sanitário. “É uma prova incontestável de que as irregularidades eram conhecidas pelos poderes de Santa Maria e de que nada foi feito para evitar uma tragédia anunciada”, sustenta a advogada Tâmara Biolo Soares, autora da petição.
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