Brasileira traficada ainda criança para a França descobre família aos 29 anos
RESUMO: Vítima de tráfico internacional infantil, Charlotte Cohen, 29, se mudou para o Brasil para descobrir a identidade de sua mãe. Em 1987, ela foi vendida, quando tinha menos de um ano, para um casal francês, que vivia em Paris. Com papéis forjados, eles conseguiram adotá-la oficialmente na França. Maltratada pela família adotiva, a brasileira conseguiu suspender a guarda quando tinha 21 anos.
Após cinco anos de buscas em terras brasileiras, Charlotte descobriu, enfim, que é filha de Jacira dos Santos, empregada doméstica que morreu assassinada aos 25 anos. Na sexta-feira de 24 de março, a paulista recebeu o resultado do exame de DNA. "Hoje eu nasci pela segunda vez", declarou aos amigos em uma rede social.
Todas as pessoas brasileiras citadas no depoimento abaixo depuseram na CPI do Tráfico de Pessoas. Guiomar, a mulher citada por Charlotte, admitiu ter feito o processo de adoção, mas negou ter sido por dinheiro.
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Eu nunca fui uma criança de orfanato. A minha mãe, Jacira dos Santos, trabalhava como empregada doméstica da Guiomar, que era traficante de crianças.
Minha mãe não tinha casa. Vivia na casa dos patrões. Dormia no quartinho de empregada numa mansão em Moema, na zona sul de São Paulo.
Depois que eu nasci, a Guiomar disse para minha mãe: "Você não vai deixar esse bebê aqui. Tem que fazer faxina, e não vai ter tempo para ficar cuidando dela. De repente, você deixa ela um pouquinho aqui comigo, e você pergunta para sua família, de Taboão da Serra [na Grande São Paulo], quem pode ficar com ela".
A Jacira não ia muito na casa da minha avó, porque meus tios não achavam ela uma moça direita porque já tinha engravidado duas vezes. A minha avó já cuidava da minha irmã mais velha. Então, a minha mãe arrumou uma vizinha para ficar comigo. Sabe como é na periferia -- você paga alguém para ficar com seu filho durante a semana.
Aí ela voltou para me buscar na casa da patroa. E a Guiomar falou: "Não, você não vai pegar a bebê de volta. Eu vou mandá-la para uma família melhor, para ter uma vida melhor".
A minha irmã conta que a minha mãe chegou chorando na casa de Taboão. Ela ouviu a Jacira e minha avó conversando num quarto fechado. Minha mãe dizia que não dava para pegar a bebê de volta, que eu já nem estava mais lá. Ela explicava que não tinha conseguido fazer nada, que a Guiomar a ameaçou. Minha mãe tinha um atraso mental de cinco anos. Ela tinha 21 anos, mas pensava como se tivesse uns 16.
Eles falsificaram tudo
A Guiomar e o marido Franco tinham todo um esquema. Ela pediu a uma empregada doméstica, a Maria das Dores, para ir ao cartório e dizer que tinha dado a luz a um casal de gêmeos. E que o parto teria acontecido na casa de uma outra amiga da Guiomar, a Marisa.
Era tudo bem organizado. Você acha que era fácil uma empregada doméstica conseguir visto para ir à França com dois bebês?
Eu cheguei em Paris quando tinha uns três meses. Fui levada junto com o Rafael, meu suposto irmão gêmeo.
Eles falsificaram tudo, as certidões de nascimento e os passaportes. Disseram que eu tinha nascido em 30 de maio assim como o Rafael, sendo que eu nasci no 30 dia de abril.
A Maria das Dores foi quem nos levou até Paris. Ela me entregou a uma mulher que queria adotar o Rafael. Essa tia adotiva me levou à casa do casal que iria me adotar. Aí eles foram a um cartório em Paris e disseram que a mãe, Maria das Dores, tinha assinado um documento abrindo mão da criança. Meus pais adotivos alegaram que a mãe foi à França, entregou a criança e fugiu.
Esse tipo de adoção nunca seria permitida hoje na França. Mas, naquela época, essa relação com as crianças tinha muito menos controle.
Eles não eram bons pais adotivos
O meu pai bebia muito, tinha um alcoolismo gravíssimo. A minha mãe adotiva era alguém que tinha muitas crise de raiva, ela explodia do nada.
Das lembranças que eu tenho de 4 ou 5 anos, era eu me perguntando: "O que é que estou fazendo aqui?". Não era pela adoção, porque eu ainda nem entendia isso. Mas era pelo ambiente, um lugar de violência, de conflito, de alcoolismo. Não era um lugar adequado para uma criança.
À noite, os meus pais brigavam muito quando ele voltava bêbado da rua. Eram muitos gritos. Eu tinha muito medo, muitos pesadelos. Eu me sentia muito perdida.
A minha mãe nunca respondia como eu tinha sido adotada, até porque ela não tinha como responder. No meu documento, só constava que eu tinha nascido no Brasil.
Eu fui crescendo, amadurecendo e tive essa angústia mais forte. Eu já não conseguia mais tratá-la como mãe. Ela me chamava de prostituta, de lata suja, dessas coisas horríveis.
Isso me incentivou a querer saber quem era a minha mãe de verdade. Foi aí que aconteceu um milagre de Deus. Eu vi uma pasta no escritório do meu pai adotivo que tinha meu nome. Tinham várias pastas suspensas e uma delas tinha escrito Charlotte na lateral.
Tudo que tinha lá era com o registro da mãe falsa, como a certidão de nascimento e meu passaporte de bebê. Tinha também a conta, em um banco francês, da Guiomar com o valor de 70 mil francos [então moeda utilizada na França]. Tinha essa declaração da mãe brasileira que abriu mão da criança no cartório da França. Como eu já fazia espanhol na escola, eu entendi quase tudo.
Eu nunca senti tanto medo, mas enfrentei a minha mãe adotiva com os documentos. E ela falou de cara: "A Maria das Dores não é a sua mãe. Ela é uma idiota, uma empregada." E o que mais me chocou foi ela admitir que pegou essa criança sem nunca ter visto um documento, sem o consentimento da mãe. Ela não falou que não sabia. Ela assumiu. Disse que a minha mãe era uma mulher muito jovem, de cabelo curto, muito bonita e que teve uma filha com um italiano, que não queria o bebê. Ela gostava de falar isso que eu era filha de italiano. Ela era muito racista.
Depois disso, eu fui retirada de casa pela decisão de um juiz. Mas não foi por causa da adoção ilegal, mas pela forma como eles me tratavam. Graças a Deus, eu fui para um abrigo aos 16 anos.
Decisão de vir para o Brasil
Aos 25 anos, eu já tinha me formado em Letras e Cinema na Universidade de Sorbbone, além de falar três línguas fluentemente: francês, inglês e espanhol. Depois de morar com uns brasileiros, eu também aprendi um pouco de português. Achei que era o momento de ir para o Brasil.
Quando eu cheguei, estava no ar a novela "Salve Jorge". E apareciam uns jovens dando depoimentos que tinham sido vítimas de tráfico internacional de pessoas. Então, eu procurei um deles, que me ajudou com o contato de quem investigava esses casos. Eles me ajudaram a investigar, e aí percebemos que era tudo um esquema de bandidos.
Eu denunciei, então, na Polícia Federal de São Paulo, que abriu um inquérito. Chamaram a traficante e ela não quis falar. As empregadas do suposto orfanato também foram depor. Só que aí a polícia disse que o crime iria prescrever, porque fazia muito tempo e naquela época não tinha uma lei que pudesse incriminá-los.
Em 2014, tinha uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) de tráfico de pessoas que estava ocorrendo em Brasília. Eles investigaram o meu caso. A Guiomar, o Franco, todos tiveram que falar em uma audiência no Ministério Público de São Paulo.
O meu caso e de outras pessoas fez com que a adoção ilegal fosse considerada um crime de tráfico de pessoas. Isso já tinha sido uma grande vitória para mim.
Em 2016, eu soube de casos de outras mães que foram manipuladas pela Guiomar e que quase todas elas tiveram seus bebês vendidos.
Eu consegui encontrar num banco de dados de São Paulo o prontuário do dia que eu nasci, 30 de abril de 1987. Eu vi um bebê com tipo sanguíneo B negativo, e constava como endereço da minha mãe a casa da Guiomar. Achei, então, o nome Jacira dos Santos, 21 anos. Foi tudo se encaixando. Descobri esse prontuário em novembro de 2016.
Aí eu cheguei na minha irmã pelo Facebook e mandei uma mensagem. E ela me respondeu: "A minha mãe, realmente, teve uma filha em 1987 que tiraram dela. Ela trabalhava na casa da dona Guiomar. Você se chamava Isabella".
Ela me contou que minha mãe foi assassinada em 1991. Eu não tenho provas. Só sei que ela foi espancada por quatro pessoas. Jogaram um paralelepípedo em cima dela. Minha mãe morreu aos 25 anos.
Teste de DNA
Depois desse contato, minha irmã veio duas vezes sozinha ao Rio de Janeiro, onde moro. Depois ela veio com uma tia. Eu tinha que fazer o exame de DNA comparado ao da minha tia, porque a minha irmã não tem o mesmo pai.
O resultado deu positivo. Saiu na sexta-feira, 24 de março.
Eu resgatei a minha dignidade. Antes disso, eu era alguém que tinha sido vendido, que não tinha passado, que não tinha família, que não tinha nome. De repente, eu tenho uma família, eu tenho um nome, eu tenho uma história.
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