Polícia do Rio matou 3 vezes mais do que a de SP neste ano
O número de mortos pelas polícias no primeiro trimestre de 2017 no Rio de Janeiro foi ao menos três vezes maior do que o registrado em São Paulo no mesmo período, de acordo com levantamento realizado pelo UOL com base nos dados do ISP (Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro) e da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo. A comparação tem como base a taxa de mortos pelas polícias por 100 mil habitantes, índice usado para aferir a criminalidade e comparar crimes em regiões diferentes.
Com 44,7 milhões de habitantes, a taxa de mortos por 100 mil no Estado de São Paulo ficou em 0,38 nos primeiros três meses do ano, quando 174 pessoas foram mortas pela polícia. No Rio, onde vivem 16,6 milhões de pessoas, o número chegou a 1,81 no mesmo período, com 302 mortes, e a tendência é que o ano termine como um dos mais violentos da década.
A diferença, explicam especialistas ouvidos pela reportagem, tem relação com a particularidade do crime nos Estados e o atual momento da segurança pública do Rio de Janeiro --em crise, o governo fluminense tem atrasado o salário dos servidores e bonificações e horas extras deixaram de ser pagas--, além de um acompanhamento mais estrito do governo paulista sobre os policiais.
O Rio, diz a socióloga e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, Silvia Ramos, é o único local do país em que criminosos têm domínio sobre territórios da cidade. Na capital, não é incomum cruzar com barricadas e homens fortemente armados “guardando” a entrada de favelas.
“Você entra em uma favela e é recebido por alguém com um fuzil que vai perguntar quem é você, para onde você vai. Vai ter domínio sobre a vida das pessoas. E isso em áreas distantes e em Copacabana, Ipanema. Esse modelo do controle de território só aconteceu no Rio”, afirma.
Essa situação leva a polícia a adotar uma “política de enfrentamento”, que vê a cidade como um local em guerra permanente, e acaba contribuindo para um maior número de confrontos entre policiais e criminosos.
O que não significa que a polícia de São Paulo mate menos. “São Paulo também tem uma polícia muito violenta e que não vê os excessos no uso da força letal como um problema”, diz Carolina Ricardo, assessora sênior do Instituto Sou da Paz.
A socióloga diz acreditar, contudo, que o fato de a polícia do Estado ter ampliado a lista de procedimentos que os agentes precisam seguir nessas situações, como prestar contas do número de disparos feitos, pode ter contribuído para a queda no número de mortes, entre outros fatores.
Segundo ela, enquanto no Rio as mortes costumam envolver armamentos pesados em confrontos em comunidades, em São Paulo estão mais relacionadas a atendimentos de ocorrências de crimes contra o patrimônio.
“Um roubo de carro, por exemplo, justificaria uma morte? Pode ser tanto um abuso do uso da força letal quanto um erro de procedimento. Como a polícia [de São Paulo] não presta contas sobre o que acontece quando o policial dispara e acaba matando alguém, é difícil determinar isso”, diz.
Pesquisador do Laboratório de Violência da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), o sociólogo João Trajano Sento-Sé lembra ainda a diferença entre o tráfico nos dois Estados. O PCC (Primeiro Comando da Capital), diz, conseguiu criar uma espécie de monopólio, reduzindo o potencial de conflito. “Tem uma capacidade maior de negociação com as autoridades.” Já no Rio o tráfico briga entre si e com a polícia.
Mortos pela polícia como indicador da situação da segurança
Silvia Ramos vê as mortes pela polícia como o indicador mais sensível da situação da segurança pública no Estado do Rio --segundo ela, o número é o primeiro tanto a cair quanto a subir em situações de crise, como a atual. “Esse número expressa muito claramente se a polícia está ou não sobre controle. O policial se vê na ponta do sistema, decidindo o que fazer a cada instante”, afirma.
Considerando todas as ocorrências registradas pelo ISP no Rio no 1º trimestre deste ano, as mortes por policiais foram as que mais que cresceram: ao menos 85% em comparação com o mesmo período de 2016.
“Há uma tradição de brutalidade, violência e ilegalidade desde que seja na favela. Isso não ocorre na zona sul, na Tijuca”, afirma a cientista social ao citar a diferença entre o número de mortes em batalhões da PM na zona sul e nas zonas norte e oeste do Rio.
Em Copacabana, Ipanema e Leblon nenhuma morte pela polícia foi registrada em 2017.
As UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) seriam uma mudança nessa lógica, ao deixar de lado o uso da força como arma principal --isso explicaria a grande queda da letalidade policial fluminense nos primeiros anos do projeto.
“No período que vai de 2008 a 2013, quando se implantam as UPPs e essa política ainda tem um acompanhamento mais próximo, há uma orientação para suspender a guerra contra o tráfico e essa taxa cai”, diz Trajano ao analisar os números compilados pela reportagem.
“Muitos comandantes pensam na atividade no Rio como uma guerra”, afirma Silvia. “O bandido atira na gente, a gente atira no bandido, e no meio pode ter uma menina de 13 anos [caso de Maria Eduarda, morta por bala perdida no pátio da escola em que estudava, na favela de Acari, zona norte do Rio]. Nem mesmo naquele caso o comandante da PM se pronunciou. O relações públicas da PM chamou de dano colateral: ‘Isso é uma guerra (...) O guerreiro é que sabe o que fazer na hora H'”.
Brasil condenado pela OEA
Em maio, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não investigar e punir os responsáveis pelas chacinas de "Nova Brasília", no Complexo do Alemão, em 1994 e 1995. A sentença destacou a violência policial como uma violação de direitos humanos no Brasil, em especial no Rio.
A decisão da Corte estabelece medidas para reduzir a violência policial. Entre elas, determina que, em caso de morte, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial em que agentes do Estado sejam suspeitos, a investigação seja feita por um órgão independente.
Apenas no último mês de maio, dez pessoas morreram no conjunto de favelas do Alemão, vítimas de balas perdidas ou em confrontos com a polícia. O local, ocupado pela PM desde 2010, também ganhou uma torre blindada, que faz as vezes de posto da UPP. A Secretaria de Segurança planeja instalar outras 20.
Para a organização Human Rights Watch, que lançou no ano passado o relatório "O Bom Policial Tem Medo: Os Custos da Violência Policial no Rio de Janeiro", os números endossam "o entendimento das autoridades de que execuções extrajudiciais são bastante comuns" no Estado.
"O número de mortos por ação policial é muito maior do que o número de baixas na polícia, fazendo com que seja difícil acreditar que todas estas mortes ocorreram em situações em que a polícia estava sendo atacada", diz o relatório da Human Rights Watch.
Para cada policial assassinado no Rio de Janeiro no primeiro trimestre de 2017, 50 pessoas foram mortas pela polícia; em São Paulo, foram 25 mortes para cada policial.
O UOL entrou em contato com a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, que se limitou a responder, em nota, que vem "mês a mês perdendo recursos humanos e materiais" e está com a mobilidade e o serviço preventivo comprometidos, tendo como consequência um "maior enfrentamento". "Esses dados refletem um cenário que não depende apenas de nós para ser revertido", afirma o órgão.
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