Aplicativos de paquera ajudam gays a socializar ou a esconder a orientação sexual?
Adriana Siqueira e a irmã, Daniela, fecharam no fim de maio o Director’s Gourmet, o mais tradicional bar frequentado pelo público LGBT nos Jardins (zona oeste de São Paulo). Havia cansaço --no corpo, no negócio e na transformação do público daquele que, por 27 anos, foi o ponto de referência de fim de noite paulistano. Aquele espaço de paquera perdeu espaço para os aplicativos de celular. Outro espaço de referência, a noite Grind, que acontecia aos domingos na boate Alôca, na Bela Vista (região central), saiu do local em março, após 19 anos.
“Isso de esvaziar por causa desses aplicativos é real. Porque ficou tudo mais fácil: entrar em um aplicativo para conhecer pessoas e não sair para a rua para conhecer. Eu tirei o Wi-Fi por causa disso. As pessoas sentavam uma na frente da outra e não se conversavam”, diz Adriana.
Em uma noite, um dos frequentadores a chamou. Com o celular nas mãos, perguntou: você conhece esse cara? “E ele estava a dois metros dele. Eu falei: você conversando com ele por aqui, e ele está ali? Eu pensei: que absurdo.”
Eu tirei o Wi-Fi por causa disso. As pessoas sentavam uma na frente da outra e não se conversavam
Adriana Siqueira, uma das proprietárias do Director's Gourmet, point gay que fechou em maio
É o que o professor de sociologia da UFScar (Universidade Federal de São Carlos) Richard Miskolci chama de “uso despolitizante dos aplicativos”. Autor do estudo “Machos e Brothers: Uma Etnografia sobre o Armário em Relações Homoeróticas Masculinas Criadas On-Line” e prestes a lançar um livro a respeito do tema, Miskolci discorre sobre o comportamento gay no Brasil, distante do que, nos EUA, se convencionou chamar “armário” --o homossexual que não assume a posição publicamente.
Segundo ele, o uso do aplicativo corrobora um histórico de que os “discretos” são alvos frequentes de pegação. Começa com os anúncios nos jornais, passam pelos chamados “clones” (estereótipos gays de comportamentos como uso do bigode ou fantasias que remetem à rudeza --as "montações" do grupo Village People são o maior exemplo) e o boom dos sarados para contrapor à epidemia de Aids nos anos 80 e 90. O “esconderijo” no aplicativo seria uma volta aos anúncios de jornal.
“Quando entra na internet, está em busca de segurança, mais do que um parceiro. Não querem sofrer uma sanção”, diz. “Tudo acaba migrando para os smartphones. É por meio de aplicativo que os homens buscam parceiros. Eles não precisam nem ir para um lugar gay nem se reconhecer como homossexual. Antes, a busca por parceiros envolvia descobrir espaços urbanos. De alguma maneira, tinham que se expor para se reconhecer como homossexual. Essa experiência marcou os ativistas.”
Ele cita o caso de San Francisco, cidade ícone do movimento gay, representado pelo bairro do Castro. “Houve um corte da experiência. Para eles, a internet destruiu a comunidade gay. Atrapalhou a criação de laços de socialidade. A internet matou o bar gay, onde as pessoas discutiam política, saúde pública. Os jovens do Castro têm uma relação individualizada da sexualidade. Eles podem ir para o bar gay, mas paqueram pelo aplicativo.”
Segundo ele, houve uma onda de suicídios de gays com mais de 50 anos no Castro no começo da década. “Os ativistas se reuniram para discutir. E tinha a ver com a solidão e a inadaptação com a tecnologia. Lá, entrevistei jovens que achavam um horror alguém olhar diretamente para você.”
Para o professor, os aplicativos, em muitos casos, servem de refúgio (ou o velho armário da questão) para quem quer distância do meio gay, mesmo mantendo relações homossexuais.
É por meio de aplicativo que os homens buscam parceiros. Elas não precisam nem ir para um lugar gay nem se reconhecer como homossexual. Antes, a busca por parceiros envolvia descobrir espaços urbanos
Richard Miskolci, professor de sociologia da UFScar
“É um meio higienizado. Muitos expressam desprezo e nojo, mas são relações mais controladas. Os aplicativos são a alternativa segura, mas individualista, de lidar com preconceitos. Muitos desprezam esse circuito, fogem do meio e o rejeitam. Não dá para culpá-los. Os homens são criados para serem machistas. O homossexual assumido foi criado para ser heterossexual. E muitos não querem ser porque em muitos lugares ainda é tabu. Para ser diferente, tem que mudar a nossa sociedade.”
Apelo à discrição
Marília Daniel, 22, é professora de história do ensino médio da rede pública de Santa Cruz do Sul (RS). “É uma cidade bem problemática, de cultura germânica, superconservadora, elitista. E eu me identifico como mulher lésbica. Por meio do aplicativo [de paquera], é como toda a população LGBT se comunica. Porque não existe boate LGBT aqui. Não tem alguma que se identifica para o público.”
Há um mês, sua namorada foi buscá-la pela primeira vez no colégio em que trabalha. “A gente tenta se inserir dentro do possível. Hoje eu vejo problema de me posicionar no trabalho. Preciso ter mais calma."
"Nos outros campos, me posiciono de forma mais enfática", conta Marília. "Dentro do trabalho, pela primeira vez desde que comecei a trabalhar, minha namorada foi me buscar. A gente fala da reação que as pessoas têm. Houve um choque depois de elas verem essa característica. Elas têm que aceitar e lidar com isso.”
Marília e os parceiros de causa se conhecem e se reúnem pelas redes sociais --a cultura gay local é toda baseada nisso. “É assim que a gente se encontra. A gente se comunica em um meio secreto, sabendo que fulano é e não precisasse falar. No Tinder, você vai saber quem é LGBT. Muitos não demonstram a opção e não tentam aparentar. Como você vai saber? É pelo Tinder. É mais fácil saber quem é mais próximo de ti. Sabe que é da comunidade LGBT mesmo sem ter falado nada.”
No Tinder, você vai saber quem é LGBT. Muitos não demonstram a opção e não tentam aparentar. Como você vai saber?
Marília Daniel, 22, professora de história de Santa Cruz do Sul (RS)
Adriana, do Director’s Gourmet, se lembra de quando precisou mudar a fachada do bar, em 2006 --uma lei municipal de São Paulo impede barulho depois da 1h, e o bar, que era aberto, foi obrigado a ser um ambiente fechado. “Eliminou a multidão que ficava em frente. Para muitos, foi assustador, porque era uma vitrine [de paquera]. Mas comecei a perceber uma mudança de comportamento nas pessoas: que aquelas que iam, e só passavam, começaram a ficar lá. As pessoas se sentiam muito expostas com aquela vitrine --não queriam tanta exposição. Quando fechou, as pessoas entraram.”
O uso dos aplicativos para pegação como forma de alívio da timidez em procurar uma paquera é, basicamente, algo parecido com o movimento no Director’s Gourmet causado pelo fim das portas abertas. “Aplicativos podem ter relações interessantes”, diz Miskolci. “A internet em geral tem expandido a possibilidade de contato, de pessoas que vivem em cidades médias e pequenas.”
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