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'Bunkers caseiros': moradores das favelas mais violentas do Rio fortificam casas contra tiroteios

Na linha de tiro, fachada de casa crivada de balas tem camada extra de cimento na Maré - Mauro Pimentel/UOL
Na linha de tiro, fachada de casa crivada de balas tem camada extra de cimento na Maré Imagem: Mauro Pimentel/UOL

Paula Bianchi*

Do UOL, no Rio

03/07/2017 04h00

Atingida por uma “bala achada” enquanto falava ao telefone no orelhão em frente à sua casa, Carla tenta garantir o sono dormindo em um quarto sem janelas e, por segurança, engrossou a parede da fachada de sua casa.

Cansado de se esconder dos tiros que eventualmente cruzavam a parede de seu armazém, Rafael trocou as portas de madeira por placas de aço. Como alguns tiros passaram também pelo metal, ele as reforçou com um muro.

Mário, que ainda não teve tempo de fechar o buraco da bala mais recente que chegou ao interior de sua loja, planeja cobrir uma das paredes com paralelepípedos a fim de evitar sustos futuros.

Os três, cujos nomes foram trocados nesta reportagem por questão de segurança, vivem em favelas dos complexos do Alemão e da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. Diante da rotina de tiroteios --entre traficantes de facções rivais e em operações policiais--, decidiram criar “bunkers caseiros”.

Moradora de área com tiroteios na Maré - Mauro Pimentel/UOL - Mauro Pimentel/UOL
Atingida por uma bala perdida aos 15 anos, Carla se habituou ao som dos tiros
Imagem: Mauro Pimentel/UOL
 

“Dizem que a gente nunca se acostuma, mas acostuma, sim. Hoje, se eu estou dormindo e os tiros começam mais forte, nem levanto”

Carla, moradora da Maré

A comerciante, 31, carrega na cintura a marca do tiro que a atingiu há 16 anos. Ela conta que já perdeu compromissos, aulas e até trabalho por se ver sitiada por tiroteios. “Quando os tiros começam para valer, não tem o que fazer. Você senta e espera.”

A casa de Carla, a poucas quadras da avenida Brasil e da linha Vermelha (vias que ligam o aeroporto internacional do Galeão ao centro do Rio) e localizada em uma das principais ruas do Complexo da Maré --a via se chama “rua Principal”--, fica na exata divisão dos territórios sob a influência das facções Comando Vermelho e Terceiro Comando Puro.

Tem como vizinhos uma escola, uma praça com playground e uma lona cultural da prefeitura. Há ainda, a alguns passos da porta, um muro com um buraco no meio, perpendicular à rua, construído pelo tráfico para servir de barricada em confrontos. No buraco, traficantes posicionam suas armas durante troca de tiros.

A família de Carla, que nasceu na comunidade e sempre morou naquela casa, se viu obrigada a fortificar a fachada com uma camada extra de cimento para tentar evitar que tiros alcancem seu interior. No entanto, os vidros não são blindados --um pedaço de papelão cobre um buraco de bala na janela do único quarto que dá para a rua.

Outra adaptação foi instalar o ar-condicionado na altura do chão e para dentro, para evitar que também se torne um alvo.

Nas noites em que os tiroteios se estendem com mais força, os pais dela levam o colchão para o quarto da filha, considerado o espaço mais seguro da casa: na parte de trás, o cômodo não possui nenhuma abertura além dessa porta e de uma ligação para o andar de baixo.

A “guerra”, diz Carla, é antiga. E deixa suas marcas nas casas, árvores e até postes, alguns ocos tamanha a quantidade de tiros que já receberam.

Casa com marcas de tiros na Maré - Mauro Pimentel/UOL - Mauro Pimentel/UOL
É comum encontrar marcas de tiros em casas por toda a Maré
Imagem: Mauro Pimentel/UOL
Durante um ato contra a violência no conjunto de favelas da Maré no dia 24 de maio, ativistas preencheram as marcas de bala nas paredes com flores de plástico. As flores não deram conta da quantidade de tiros.

No caminho até o local, um dos mais violentos do Rio, a reportagem cruzou com ao menos três pessoas armadas --um jovem que brincava de fazer mira com um fuzil, outro rapaz com uma pistola prateada na cintura e um homem com uma AK47 pendurada no ombro.

Ao tentar fotografar as marcas dos tiroteios, os próprios moradores alertaram que era melhor abaixar a câmera, “por segurança”. Também para preservar a identidade da família de Carla, não foram feitas imagens do interior de sua moradia.

No final deste mês, a Justiça do Rio determinou, com base em uma ação civil pública da Defensoria Pública, que o Estado apresente em até seis meses um plano de redução de riscos e danos a fim de evitar violações de direitos humanos durante operações policiais no Complexo da Maré. A decisão obriga ainda a presença de uma ambulância na comunidade durante as operações, além da instalação de equipamentos de vídeo e de áudio, e de localização por satélite nos carros das polícias civis e militares.

Parede de paralelepípedos e porta de aço

Mário passou a abrir a sua loja, vizinha à casa de Carla, duas horas mais tarde, às 9h, a fim de sentir se “há clima para trabalhar”. Ele calcula que seu comércio passa, em média, quatro dias por mês fechado por conta dos tiroteios.

Há três meses, começou a atender os clientes a cerca de 1,5 m porta adentro depois que um tiro atravessou a parede, quase na altura do balcão em que ele costumava ficar junto à entrada, e só não feriu ninguém por conta de uma placa de mármore que o inquilino anterior havia colocado no local.

Lateral de loja Maré - Mauro Pimentel/UOL - Mauro Pimentel/UOL
Lateral de uma loja que teve a parede perpassada por balas no Complexo da Maré
Imagem: Mauro Pimentel/UOL
O ar-condicionado, vizinho ao buraco, “morreu na guerra” após ser atingido por diversos disparos.

Mário já comprou material para construir uma parede de paralelepípedos por fora de um dos lados da loja, também com a intenção de se proteger. Ele teme, contudo, que traficantes passem a usar a nova camada da parede como barricada.

A reportagem questiona se os dois já não pensaram em se mudar. Carla diz que ali é a casa dela, e não gostaria de viver de aluguel. “E também vou mudar para onde? Onde é que não tem tiroteio?” Mário justifica que, apesar da violência, o ponto é um dos melhores do bairro. “É a melhor rua para se trabalhar, quando está calmo.”

Do outro lado da avenida Brasil, e também na linha de tiro, Rafael, dono de um pequeno armazém no Complexo do Alemão, construído em frente à recém-instalada torre blindada da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) no conjunto de favelas, diz o mesmo. “Comprei isso aqui para trabalhar e fiquei.”

Enquanto na Maré os tiroteios mais frequentes são entre grupos traficantes rivais, ali o que o preocupa são os confrontos entre criminosos e policias. Na semana da instalação da torre, ao menos cinco pessoas morreram.

Casa tiroteio Alemão - Carolina Farias/UOL - Carolina Farias/UOL
Com medo dos tiros, comerciante colocou portal de metal e reforçou a parede
Imagem: Carolina Farias/UOL
A porta de aço, faz questão de mostrar, já segurou tiros mais de uma vez, mas não foi o bastante --por isso Rafael construiu há cerca de três anos um muro, com 12 cm de espessura (foto acima).

Há 26 anos no Alemão, o paraibano se diz habituado à rotina de violência. Preferiu não retirar uma bala ainda alojada no balcão e já não dá atenção a marcas de tiros por toda a parede dentro de seu comércio.

Entre janeiro e abril, o 22º Batalhão da Polícia Militar, que atende a região da Maré, registrou 23 mortes em supostos confrontos com a polícia; no 16º BPM, responsável pela região do Alemão, foram 27 mortes.

De acordo com o aplicativo Fogo Cruzado, ligado à Anistia Internacional, que registra trocas de tiros na capital fluminense e na região metropolitana, até 19 de junho, foram verificados ao menos 82 tiroteios no Alemão e outros 22 tiroteios na Maré.

Um relatório da ONG Redes da Maré, que busca mapear violações decorrentes da “ação das forças de Segurança Pública na Maré, no momento do enfrentamento a grupos civis armados”, identificou que os serviços públicos no conjunto de favelas foram suspensos por ao menos 20 dias durante todo o ano passado devido à violência.

Segundo a organização, a letalidade policial na favela é três vezes maior do que no resto do Estado.

“Temos de nos indignar e buscar caminhos coletivos de enfrentamento desse ciclo que coloca os moradores de favelas numa condição de inferioridade em relação ao direito à vida e à segurança pública”, afirma a ONG.

Procurada, a Secretaria de Segurança Pública do Rio afirmou que a Polícia Militar enfrenta dificuldades decorrentes da crise financeira do Estado. A pasta disse ainda que não é a única responsável pelo quadro de violência que voltou a se agravar nos últimos meses.

"A Polícia Militar vem mês a mês perdendo recursos humanos e materiais. Nossa mobilidade tem sido comprometida, dificultando o serviço preventivo, e a consequência direta é um maior enfrentamento. Somam-se a isso, os mais de 30 mil mandados de prisão em aberto não cumpridos no Estado e as audiências de custódia que têm colocado em liberdade pessoas que são reiteradamente presas pela Polícia Militar. E que até a presente data a corporação tem mais de cem fuzis apreendidos. Esses dados refletem um cenário que não depende apenas de nós para ser revertido", disse a secretaria, por meio de nota.

Pouco antes de deixar a Maré, a reportagem do UOL ouviu dois disparos. “Daqui a pouco a confusão chega até aqui”, comentou o dono de uma padaria. “Quando o tiroteio começa, todo mundo sabe o cantinho da sua casa que é mais seguro”, acrescentou um cliente. O relógio marcava 14h34 de uma segunda-feira.

Casa Maré - Mauro Pimentel/UOL - Mauro Pimentel/UOL
Casa na Maré fica na divisa de territórios de duas facções criminosas
Imagem: Mauro Pimentel/UOL

*Colaborou Carolina Farias.