Entre nostalgia e paixão, Jockey de SP testa capacidade de se renovar e ampliar o público
Sentado num banquinho junto da cerca de madeira que separa as raias dos cavalos do estacionamento dos automóveis, de bengala na mão e boina escura na cabeça que recobre parcialmente os olhos muito claros, o homem galopa o tempo rumo ao passado "majestoso e esplêndido".
"Comecei montando cavalo em 1943. Tinha 14 anos ainda. A vida eu passei toda entre os cavalos. A mudança toda aqui foi do bem para o mal, do vinho para a água. Aqueles tempos eram outra coisa. Tinha muito cavalo aqui, isso era uma potência, a gente não podia nem andar de tanto cavalo. Perdemos a liderança para o Rio de Janeiro. Agora não tem mais ninguém, não tem mais público. Tenho saudade daqueles tempos, quando muitos jornalistas vinham, rádios. É uma tristeza, é uma pena o que aconteceu. Já estou cansado, as pernas cansaram, só a cabeça funciona bem. A esperança é que melhore com a nova administração."
O galope da memória é de Altair Oliveira, 88, um dos mais experientes treinadores e proprietários de cavalos em atividade no Brasil, no início da manhã fria embora ensolarada desta véspera de corridas no hipódromo do Jockey Club de São Paulo, na capital paulista.
O começo: uma "esplêndida realidade"
O hipódromo de Cidade Jardim foi construído sobre área total de 600 mil metros quadrados localizada junto do rio Pinheiros, em pouco mais de três anos, a partir de 5 de novembro de 1937, e inaugurado oficialmente no dia 25 de janeiro de 1941, aniversário da capital paulista, com muita pompa e "cocktail dançante aos convidados do club e aos senhores sócios e excelentíssimas famílias".
O terreno foi cedido pela prefeitura paulistana, com a devolução da área ocupada pelo hipódromo antigo, na Mooca.
Noticiou em manchete o maior jornal de São Paulo à época, a 25 de janeiro: "Milhares de pessoas deverão presenciar hoje, à tarde, as festividades inaugurais do majestoso Hipódromo do Jockey Club de São Paulo, na Cidade Jardim".
O então presidente do Jockey Club de São Paulo, Luiz Nazareno de Assumpção, falou da construção de um sonho, durante a bênção solene do novo hipódromo: "Porque era um sonho, senhores, a esplêndida realidade que agora se descortina aos nosso olhos!". Afinal, São Paulo, com o conjunto, se equiparava, enfim, ao Rio de Janeiro e ao seu hipódromo da Gávea, inaugurado em 1926.
Mais de 70 anos depois da inauguração, marco de uma época, já não há mais muitas cabeças nem chapéus ao redor, símbolo da elegância da elite paulistana. Isso, o tempo devorou com a sofreguidão de um puro-sangue, embora sejam essas mesmas as construções em estilo art déco originalmente projetadas pelo arquiteto Elisiário Bahiana, os mesmos mármores das paredes e do chão, os mesmos altos-relevos assinados pelo escultor modernista Victor Brecheret na fachada e nas paredes internas, que celebram a relação entre cavalos e homens, milenar. Todo um conjunto tombado pelo patrimônio histórico em 2010.
"A gente é saudosa de tudo daquela época"
Agora, a nostalgia que se sente, o lamento, o relincho doído que se ouve aqui e ali pelo prado, pelas raias de areia, no interior das cocheiras, pelas tribunas anciãs, junto dos guichês de apostas com funcionários de mais de 40 anos de serviços prestados, nas mesas de cafés, tem correspondência nos números.
Nos tempos dourados, foram 128 jóqueis disputando provas ali; hoje são 34 (entre eles, três mulheres). A vila hípica, com capacidade nas cocheiras para 2.100 cavalos, hoje acolhe 600 animais. O Brasil chegou a criar anualmente até 7.000 cavalos PSI (puro-sangue inglês, a raça de corridas por excelência), hoje são 2.000 por ano.
A escola preparatória de novos jóqueis tem matriculados sete aprendizes (e a única menina se acidentou); antes eram 20 alunos, em média. Já foram quatro reuniões semanais (dias de corridas) em Cidade Jardim, hoje há apenas uma, aos sábados.
As dependências, que chegaram a receber dezenas de milhares de fãs do turfe nos grandes páreos, o principal disputado ali é o Grande Prêmio São Paulo, hoje normalmente recebem mil pessoas, número que pode girar entre 3.000 e 5.000 nos grandes dias.
O turfe, ao lado do remo, do críquete e do ciclismo, dominou as páginas esportivas das principais publicações da imprensa do país no fim do século 19 e nas primeiras décadas do século 20, quando o futebol era ainda esporte em desenvolvimento e meio marginal e ainda não havia nem muitos carros nem Fórmula 1. Os cavalos e os jóqueis eram celebridades nacionais. O turfe corria praticamente sozinho na alma nacional.
Apesar das adversidades, da mudança dos tempos e até do perfil da gente de dentro, o turfe mantém a sua alma viva. Resiste ao tempo e se projeta movido pelo motor que é a paixão antiga por cavalos, que continua galopando no peito. Há um amor latente e evidente entre homens e animais no Jockey Club de São Paulo.
"A gente é saudosa de tudo daquela época, mas também já estou na idade da saudade", assume Vitor Fornasaro, 70, treinador de cavalos, "no Jockey desde que nasci", de pés enfiados na areia da raia de trabalhos (treinos). "É assim: o turfe é uma coisa romântica e dinâmica. São ciclos, passam muito rápido."
"Muitas pessoas doaram a vida por isso aqui"
Porfírio Menezes, 56, cronometrista e fotógrafo oficial, é ponte viva entre o passado e o presente: frequenta o Jockey desde os seis anos e lá traballha há 42. Começou como office-boy e contínuo e depois se tornou, em 1976, assistente do fotógrafo oficial de então, Décio Chieregatti, hoje morto, cujo trabalho continua, medindo tempos dos cavalos e registrando fotograficamente os lances principais. "Tenho muita saudade de antigamente. O Jockey é um esteio na vida da gente. Muitas pessoas doaram a vida por isso aqui."
Altair Oliveira afaga com a mão encarquilhada: "O cavalo é uma alegria, gosto de estar junto dele. A pessoa tem de ter um dom para lidar com o cavalo. Ele não fala, mas a gente que está com ele sabe quando ele está cansado, como trabalha a respiração dele. Um cavalo é uma coisa, outro cavalo é outra, cada um tem o seu jeito".
Eduardo Garcia, 56, treinador desde 1987, filho e neto de treinadores, assume seu amor de pai pelos animais que treina para competir. "Minha cabeça sempre fica um pouco aqui, preocupado com algum cavalo, 'Será que o cavalariço lembrou de cobrir aquele cavalo com a capa?'. Porque sei que ele tem frio. É como um filho."
Primeira joqueta (o feminino de jóquei) a conquistar, neste ano, com 55 vitórias, o campeonato de estatísticas de Cidade Jardim (que contabiliza os resultados de toda a temporada), competindo de igual para igual com os homens, Jeane Alves, 29, de Acopiara (CE), é apaixonada por cavalo desde os nove anos, quando fugia da mãe para montar.
"Gosto de acompanhar o dia a dia dos cavalos e ter esse vínculo com eles. A gente vai tendo aquela identificação com o tempo", confessa. Dois são seus prediletos: a égua La Vie en Rose e o cavalo Barão de Sena. "É só ele escutar a minha voz que já começa a relinchar."
"Quem compra o cavalo não tem a paciência do criador"
Garcia desgosta mesmo é quando sente a pressão, a razão, a lógica do dinheiro prevalecer sobre a paixão, sobre o amor que tudo sabe e vê na expressão do animal, no dia a dia da relação. "O proprietário já não é tão apaixonado como antigamente", aponta. O dono, diz, não tem muita paciência para esperar o tempo certo de um cavalo. Manter um cavalo numa cocheira do Jockey custa em torno de R$ 2.000 mensais.
A raiz desse problema, identifica, é a multiplicação de leilões milionários de cavalos, pois a paixão do criador, aquele que viu nascer o bicho, é muito distinta da de quem o comprou no lance e dele quer tirar proveito, como investimento. "Quem compra o cavalo não tem a paciência do criador. Se o cavalo não vence logo, vende."
"Todo cavalo tem seu tempo", diz Garcia. "Antigamente, o cavalo tinha muito mais chance de mostrar seu potencial. No passado, muitos começaram a mostrar mais categoria com mais idade."
Garcia lembra o exemplo do cavalo Pantheon, que começou a ganhar provas apenas aos cinco anos de idade, quando muitos cavalos estão prestes a se aposentar ou são já dados como velhos. "O Pantheon marcou época, mas hoje não teria a menor chance."
Há mais de 50 anos no lugar, grande parte como jóquei, competindo no prado, J. C. Ávila, de boina clara na cabeça, olhos vívidos escuros circunscritos pelas rugas finas, confirma a pressão: "A fruta não está madura, mas o cara quer colher. É o cavalo que te diz quando está pronto para correr, e não o contrário".
"Para ser um bom treinador, é preciso sensibilidade, bom senso e trabalho. A sensibilidade é nata, ou se tem ou não se tem", define o treinador Fornasaro, sorrindo, hoje cuidando de 26 cavalos. "É sentir, olhar nos olhos, 'tête-à-tête'. No fundo, o cavalo te diz e você precisa saber entender."
"O treinamento de cada cavalo é individualizado, não é uma máquina", pondera José Aranha, 42, treinador de 36 cavalos, que está de partida para trabalhar na Argentina, principal centro hoje do turfe na América do Sul. "Uma das grandes virtudes é a paciência, a persistência."
"Não adianta ter tudo isso sem 'feeling'", ressalva J.C. Ávila, hoje responsável por 11 cavalos. "E é gostar da coisa. Se não gostar, não vai, porque isso aqui exige dedicação total, uma vida."
"Minha mãe acha que ser jóquei é coisa de louco"
Após os trabalhos com os cavalos nas raias, sob a orientação de treinadores, encerrados por volta das 9h30, e da limpeza das baias, atividade feita em rodízio, é hora de aula teórica para os jóqueis do futuro, numa das salas da Escola de Preparação de Jóqueis.
São, hoje, seis aprendizes, todos homens, que dividem, de dois em dois, quartos no alojamento dentro do próprio Jockey, onde moram.
A única menina da turma, Dailey Milan, 20, sofreu recentemente grave acidente durante os trabalhos e teve fraturas múltiplas, entre elas, da bacia e da omoplata. Ainda não pode andar e seu futuro no esporte ninguém sabe.
As histórias desses meninos têm pontos em comum: o amor por cavalos desde muito cedo, alguma influência familiar na escolha da profissão e o desejo de ganhar o mundo um dia, ir para os grandes centros mundiais do turfe, onde estão os melhores jóqueis e animais.
Um nome é unanimidade. Todos ali querem ser João Moreira, apelidado de "Magic Man", pelas mágicas que dizem fazer sobre um cavalo. Moreira está hoje vivendo e montando em Hong Kong, meca do turfe.
Robson Nunes, 18, de Ivaiporã (PR), foi o vencedor do campeonato de estatísticas como aprendiz na temporada encerrada no último sábado de junho. O pai é jóquei e disputa provas em cancha reta (modalidade em que os cavalos correm cada um em sua raia, separados dos demais) no Rio Grande do Sul.
Começou a montar em fazenda, depois passou para a cancha reta e decidiu tentar a sorte em São Paulo, em provas de longa distância de galope plano no prado (grama). "Tem de ter calma e cálculo. Não pode forçar nem segurar muito o cavalo, senão ele fica bravo."
Rudinick Viana, 17, de Paranaguá (PR), é aprendiz por influência do irmão Ruberlei Viana, que monta em Cidade Jardim, mas está de partida para a Argentina.
Lucas Felipe, 17, veio de Cuiabá. "Meu avô falou para eu ser jóquei. Comecei a montar em cancha reta, fui gostando e, como lá [em Cuiabá] era muito fraco, vim para cá realizar um sonho."
Ele diz que a paixão que sente por cavalo o pai nunca sentiu e que a mãe "não é contra, mas também não é muito a favor". "Ela acha que ser jóquei é coisa de louco. É mesmo um esporte perigoso. Viver num cavalo correndo só Deus sabe o que pode acontecer."
Michael Silva Pereira, 19, de São Paulo, tem família no Jockey: o pai trabalha ali. "Praticamente nasci aqui. Sempre quis ser jóquei. É o melhor serviço do mundo, nunca pensei em ser outra coisa."
Igor Silva, 20, de Capim Grosso (BA), que se forma agora profissional depois de dois anos de curso, seguiu os passos do irmão, que monta também. Ele saiu de casa sozinho aos 13 anos. André Rodrigues de Oliveira, 18, de São Paulo, vem de família de turfistas também: o pai é treinador e os irmãos são proprietários.
Na sala de aula, os aprendizes assistem a vídeos das provas que eles mesmos disputaram no sábado passado em Cidade Jardim. O professor da turma, o ex-jóquei Ronaldo Santi, dono de currículo com 1.700 vitórias ao longo de 48 anos de profissão e 12 fraturas no corpo, analisa onde foram bem e onde erraram. "Não é chicote que ganha corrida, quem ganha corrida é o animal", filosofa.
E fala sobre o contexto do turfe: "Sinto que hoje está difícil para quem está começando. Antigamente, era só o futebol e o turfe. Hoje se diversificou", avalia. Mas ergue um imaginário chicote contra a nostalgia e o saudosismo: "O que passou passou. Não reclamo. Com a nova administração pode melhorar."
Quando chega à cocheira, Santi é recebido com carinho, deferência e muitos beijinhos, de verdade. De um cavalo que o lambe feliz, surgido do nada no Jockey, sem origem nem destino, e acolhido como órfão. Hoje vive e trabalha ali como punga, o nome dado ao cavalo auxiliar dos grandes campeões. O punga acalma os competidores, segue lado a lado com eles na raia, no prado, evita disparadas. Serve com humildade, sem alarde, sem prêmios, sem fotos, mas com amor.
Novos planos: estrutura de lazer e serviços
A nova administração, sobre a qual recai grande parte da esperança de um futuro senão outra vez dourado ao menos benfazejo, assumiu em março deste ano, após vitória em eleições diretas. O comando agora é do empresário Benjamin Steinbruch.
Os novos planos, segundo Alessandro Arcangeli, vice-presidente do Conselho Administrativo, incluem a ampliação da oferta de serviços para a população já durante a semana, em dias em que não há corridas. A ideia é tornar permanente uma estrutura de lazer e serviços, aos moldes de um shopping center.
A nova gestão negocia valores atrasados de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) com a Prefeitura de São Paulo, que inclui o valor da desapropriação da antiga Chácara do Jockey, na Vila Sônia, zona oeste, transformada em parque municipal pela gestão anterior, de Fernando Haddad (PT).
Há uma briga pelo valor pago pela área, que o Jockey defende ser mais alto. O valor mensal do IPTU em 2017 de Cidade Jardim é R$ 1,528 milhão, totalizando pouco mais de R$ 15 milhões no ano, segundo a prefeitura.
A nova administração está pleiteando a isenção de IPTU do local, prerrogativa que clubes da capital paulista têm. "Prestamos um serviço como clube para a população, a entrada aqui é gratuita e livre, é uma área verde disponível como poucas na cidade. Esses muros existentes dão a entender que é um lugar fechado, mas não é, pelo contrário", defende Arcangeli. "Queremos também renovar o público aqui, trazendo escolas para visitas, para conhecer a cultura do cavalo, o valor da natureza. O cavalo combina muito bem com a cidade de São Paulo."
O vice-presidente do conselho diz que está em andamento plano de controle do deficit das atividades, que já incluiu a redução do quadro de funcionários fixos em um terço, para pouco mais de 200 empregados. Programa a volta de uma reunião (corrida) durante a semana, ainda em 2017.
Ele nega que o Jockey vá abrir mão de alguma área hoje do complexo de Cidade Jardim, por exemplo de parte das cocheiras, para pagar dívidas e gerar caixa. "Isso não está em negociação e não terá isso."
Chegou o dia esperado por todos. Neste sábado de corridas, homens de cabelos brancos não tiram os olhos dos programas de apostas. Qual será a barbada do dia? Crianças correm nos jardins gramados, mulheres e homens jovens, casais sorriem e fazem festa quando os cavalos correm e cruzam o disco final. Deu na cabeça! Sorte de principiante? Que nada, é olho!
O passado continua no presente, o presente anuncia o futuro. Nesse páreo pela renovação de uma atividade que busca um novo público, não há azarão, a sorte não entra. Só será bom com trabalho sério e paixão, dizem.
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