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Luta do PCC pelo monopólio das drogas custará muitas vidas, diz escritor que investiga o tráfico

O jornalista Allan de Abreu, autor de "Cocaína - A Rota Caipira" - Divulgação
O jornalista Allan de Abreu, autor de "Cocaína - A Rota Caipira" Imagem: Divulgação

Flávio Costa

Do UOL, em São Paulo

26/07/2017 04h00

Realizado pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) em uma ação audaciosa, o assassinato do narcotraficante Jorge Rafaat Toumani, o Saddam, em 15 de junho de 2016, é um marco da história do crime organizado na América do Sul. 

Saddam, como ele era conhecido, atuava como uma espécie de regulador do submundo do crime na fronteira da cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero com a brasileira Ponta Porã (MS) --pontos essenciais para o narcotráfico internacional. A morte desencadeou uma luta violenta pelo espólio do criminoso, sobre a qual ainda não foi possível identificar que lado está ganhando.

"Ele morreu porque se tornou um empecilho às ambições monopolistas do PCC de dominar o tráfico naquela região", afirma o jornalista e escritor Allan de Abreu. Ele escreve sobre tráfico de drogas há uma década. Metade desse tempo foi dedicada às pesquisas e viagens para a redação do livro recém-lançado "Cocaína - A Rota Caipira" (Editora Record).

"Essa tentativa de implantar um monopólio da facção brasileira está custando muitas vidas não só na fronteira com o Paraguai, mas também no sistema penitenciário brasileiro e nas ruas do Nordeste", diz.

O livro de 824 páginas revela as engrenagens do narcotráfico, por meio de histórias de criminosos, inclusive Saddam e membros do PCC, que atuam no maior corredor de drogas do país, de acordo com a PF (Polícia Federal).

Plantação de coca na Bolívia - Christian Tragni/Folhapress - Christian Tragni/Folhapress
Plantação de folha de coca na Bolívia
Imagem: Christian Tragni/Folhapress

A rota caipira só começa a se desenhar após as colheitas das plantações de coca na região de Chapare, no centro da Bolívia. A folha é transformada na pasta base de cocaína em rústicos laboratórios na selva daquele país e então é levada até as cidades da região de fronteira do Brasil e com Paraguai. Lá, é colocada em aviões de pequeno porte até as cidades cidades do norte e centro-oeste paulista e do Triângulo Mineiro --daí o nome para a rota.

A partir daí, a cocaína segue dois caminhos básicos: os grandes mercados consumidores do Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo, ou o Porto de Santos, de onde será exportada para Europa e África.

Leia abaixo os principais trechos de entrevista de Allan de Abreu ao UOL:

UOL - O que é a rota caipira?

Allan de Abreu - A chamada rota caipira é o principal corredor de drogas do país. A região, compreendida pelo interior de São Paulo e Triângulo Mineiro, se localiza no meio do caminho entre os países produtores da cocaína, Bolívia, Peru e Colômbia --além do Paraguai, que funciona como uma espécie de entreposto-- e os grandes centros consumidores de cocaína do Brasil, que são Rio e São Paulo, e o porto de Santos, por onde a droga é exportada sobretudo para África e Europa. 

Estamos falando de cidades como São José do Rio Preto, Ribeirão Preto, Bauru, Presidente Prudente, Marília, Piracicaba. Praticamente todo o interior de São Paulo, exceto o Vale do Paraíba e a região Sul. 

Cocaína - sb-borg/iStock - sb-borg/iStock
Cocaína hiperestimula liberação de dopamina no cérebro
Imagem: sb-borg/iStock

Como a cocaína chega à rota caipira?

Há o transporte terrestre: muitas vezes a droga vem de avião dos países vizinhos e é descarregada no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul. Depois ela é transportada em caminhões com cargas lícitas, como de soja e de milho, que vão para Santos. A malha rodoviária de São Paulo é muito extensa e nem sempre bem fiscalizada. O avião é o meio predileto de transporte do narcotráfico. 

Qual o motivo?

Tem vários aspectos que favorecem o tráfico aéreo nesta rota: o interior paulista é uma região que chove relativamente pouco, tem tempo bom quase o ano todo. É uma região muito plana, o que favorece a criação de pistas de pouso clandestinas nas áreas rurais, além de ser uma região caracterizada pelo canavial.

A cana de açúcar é um paraíso para o narcotráfico porque é pulverizada por aviões pequenos e essas fazendas todas têm pistas clandestinas. E o tráfico se vale dessas pistas. Se a cana de açúcar está baixa, impede uma eventual operação policial de flagrante porque o traficante pode ver qualquer movimento a quilômetros de distância. E, se a cana está alta, ela oculta o avião. 

O avião vem abarrotado de pasta base da cocaína. Eles retiram tudo de dentro, só deixam o banco do piloto. Cabe até 600 kg de cocaína. O descarregamento demora no máximo três minutos. O avião desce, taxia e não desliga o motor. O piloto já toma voo de novo. A ação tem que ser rápida para evitar uma eventual ação policial. Semanalmente, dezenas de aviões passam transportando drogas pelo interior de São Paulo. O que se apreende é mínimo perto do que se transporta de maneira habitual.

Os traficantes costumam também comprar fazendas nesta região para o refino da droga?

Sim. Fazendas na região costumam ser adquiridas por narcotraficantes para o refino e o "batismo" da droga.

Para trabalhar num lugar como esse é necessário ter um conhecimento químico, mas é primário. Um quilo vira três.

A cocaína que é exportada nunca é misturada com outros produtos, por conta da exigência do mercado europeu.

Já na cocaína que se consome no Brasil são usadas várias tranqueiras para aumentar o lucro.

Você esteve na região do Vale do Chapare, na Bolívia, um importante centro de cultivo de coca. O que você descobriu por lá?

Mais de 50% da cocaína que se consome no Brasil é de origem boliviana. Existem duas regiões de plantio de coca na Bolívia: a região de Yungas, próximo a La Paz, e a de Chapare, que fica no Departamento de Cochabamba, na área central da Bolívia. É um lugar de altitude média. É de lá que vem a cocaína que é consumida no Brasil.

Policia boliviana - Christian Tragni/Folhapress - Christian Tragni/Folhapress
Policia boliviana desmonta laboratório de cocaína em floresta do Vale do Chapare
Imagem: Christian Tragni/Folhapress

Os cocaleiros são pessoas miseráveis, todos descendentes de índios, aimarás principalmente. Você não vai encontrar um latifúndio de coca, são pequenas plantações, entre meio e um hectare. 

A gente fala em laboratório, mas não é um lugar sofisticado, na verdade é bem simples.

A colheita ocorre a cada três meses. É manual e muito precária, sem qualquer mecanização. Ele coloca as folhas para secar ao sol, em cima de lonas plásticas. E depois as revende para mercados de coca, as chamadas centrais, que são pequenos sindicatos dos cocaleiros que juntam essa produção para mercados, feiras livres, farmácias. É muito comum você encontrar farelo de folhas de coca nestes lugares. É um comércio totalmente legalizado.

Os cocaleiros então não participam diretamente do narcotráfico?

Não. O que ocorre é que esses mercados centrais de coca, em vez de darem um destino legal, desviam a produção para os narcotraficantes que atuam na Bolívia --não só deste país, mas também narcotraficantes colombianos e mexicanos.

Eles ficam com uma parte miserável do mercado. Elas chegam a receber US$ 100 (por volta de R$ 315), no máximo US$ 200 (R$ 730) pela colheita. Eles são muito pobres. A cocaína começa a gerar riqueza a partir do momento em que é produzida a pasta base. Essa região do Chapare tem um parque nacional, com uma área muito extensa de selva. É dentro deste parque que esta folha de coca é levada e, por meio de processos químicos, se transforma na pasta base.

Traficante Jorge Rafaat foi assassinado pelo PCC em junho de 2016

Band News

Essa pasta base sai do interior da Bolívia ao valor de US$ 800 (R$ 2.500) por quilo. Na fronteira, ela passa a custar US$ 2.000l (R$ 6.300). Em São Paulo, o preço chega a US$ de 8.000 (R$ 25.300) a US$ 12 mil (R$ 38 mil). Quando ela chega à Europa, passa a custar US$ 50 mil (R$ 158 mil). 

O seu livro conta a trajetória de diversos narcotraficantes. Entre eles, destaca-se o famoso Luiz Carlos Rocha, o Cabeça Branca, preso recentemente pela PF.

Ele é um cara diferenciado. Ele começou como contrabandista de café na região de Ponta Porã (MS), na fronteira com o Paraguai. Quando esse negócio deixa de ser interessante, ele e outros contrabandistas usam essa logística para traficar maconha e cocaína. Ele ficou solto durante muito tempo. Nesse período, ele evoluiu os negócios dele de uma forma astronômica.

Ele conseguiu escapar de ser preso em várias ocasiões.

Quanto mais poder o traficante alcança, mais ele se distancia da droga que ele negocia.

Cabeça Branca era capaz de manipular dinheiro em dezenas de contas bancárias espalhadas pelo mundo. Com o passar do tempo, ele vai conseguindo transportar uma quantidade cada vez maior de cocaína. A Polícia Federal estima que, só na rota caipira, ele transportava de três a cinco toneladas de cocaína por mês. A PF suspeita que ele operava ainda em outras quatro rotas. O cara era um fenômeno. Eu arrisco a dizer que ele era maior traficante da América do Sul, maior que qualquer colombiano. Ele nunca usou de violência, ele é um sujeito absolutamente tranquilo ao defender seus interesses, diferentemente do PCC, que se impõe pela violência. Ele subornou muitos policiais brasileiros, do Paraguai e da Bolívia também.

Narcotraficante Cabeça Branca movimentou mais de US$ 1 bilhão

Band Notí­cias

Você também escreve sobre Jorge Rafaat Toumani, o Saddam. Por que a morte dele é um acontecimento importante para o narcotráfico da região?

Ele foi durante uma década sócio do Cabeça Branca. Ele dominava o tráfico nesta região de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, onde atuam muitas organizações criminosas, sobretudo brasileiras. É dali que partem esses voos com carregamento de cocaína, seja com destino ao interior de São Paulo, seja para outras rotas. É uma região muita disputada pelos traficantes. E Jorge Rafaat regulava a atuação dessas diversas organizações criminosas na região. Ele nunca proibiu outras organizações de atuarem lá, mas desde que os negócios paralelos não prejudicassem seus próprios esquemas. Ele tinha uma grande quadrilha, com muitos capangas. Pela força, ele impunha seus interesses. Esse trabalho regulador do Rafaat passou a contrariar os interesses do PCC de dominar aquela região. Pelo menos há dez anos, o PCC já atua no Paraguai e na Bolívia. E Jorge Rafaat nunca gostou do PCC. Sempre foi houve rusga nesta relação entre as duas quadrilhas. 

A morte dele representa uma vitória importante dentro do plano do PCC de monopolizar o narcotráfico no Brasil

Sim. O PCC é monopolista. Chegou ao Paraguai e à Bolívia justamente com intenção de eliminar os intermediários dessa cadeia do tráfico. Estando nestes países, eles negociam diretamente com esses fornecedores, em vez de depender de intermediários. A liderança do Jorge Rafaat era estabilizadora do tráfico naquela região, ele tinha as coisas mais ou menos organizadas. A violência naquela região explodiu depois da morte dele. Neste final de semana teve chacina em uma boate na região, por exemplo. O fim de Saddam representou o começo de uma briga generalizada. O grupo dele está interessado em manter a posição. Está acontecendo uma guerra desses grupos que historicamente atuam nesta fronteira com o PCC, que é considerado um grupo invasor. Não dá para dizer quem está ganhando.

Qual é a ambição do PCC?

O sonho do PCC é se transformar num grande cartel. O maior da América do Sul, dominando todas as principais rotas de tráfico. Como foi em Medellín, como foi o de Cali, mas com métodos muito mais empresariais. Hoje, se o Marcola cair, o PCC vai continuar existindo. O PCC não tem aquela hierarquia personalista que existia nos cartéis colombianos, como o de Pablo Escobar. A queda dele como foi uma grande lição para os traficantes. Por ser um cara centralizador, o cartel se despedaçou após sua queda.

O PCC é diferente. O PCC é uma empresa. Uma empresa do crime.

Quais são as consequências dessa guerra imposta pelo PCC não só no Paraguai como também no sistema penitenciário brasileiro?

Esta tentativa do PCC de monopolizar o tráfico vai custar muitas vidas. Já custou e está custando na região de fronteira do Paraguai. Está custando nas frentes de disputa da Amazônia e do Nordeste. Infelizmente, o Brasil vai acompanhar outras rebeliões sangrentas em presídios no país.

E diante deste descalabro da segurança pública com as Polícias Civis totalmente desmanteladas, a exemplo do que aconteceu no Rio, só nos resta contar com o know-how que a PF adquiriu no combate ao narcotráfico durante os últimos anos. É a nossa única esperança. E há ainda um outro aspecto deste cenário: ainda não houve uma grande investigação no Brasil que revele as verdadeiras relações entre o narcotráfico e a alta política.