MP defende promotor, diz que não houve estupro na Paulista e pede mudança na tipificação do crime
A Procuradoria-Geral de Justiça (PGJ) de São Paulo defendeu, em duas notas divulgadas nessa quinta (31) e nesta sexta-feira (1º), a posição do promotor Márcio Takeshi Nakada no caso de um homem preso em flagrante após ejacular em uma passageira de ônibus na avenida Paulista. Detido na terça (29) por estupro, ele foi libertado no dia seguinte. "Tecnicamente, o que foi noticiado não se caracteriza como estupro", diz o Ministério Público em texto enviado ao UOL.
Nakada se manifestou na audiência de custódia no Fórum da Barra Funda, na quarta (30), pelo relaxamento da prisão em flagrante de Diego Ferreira de Novais, 27, que já tinha outras 16 passagens pela polícia por assédio sexual e estupro no transporte público. Na audiência, o juiz José Eugênio do Amaral Souza seguiu a recomendação do promotor e determinou a soltura do suspeito por considerá-lo um contraventor, não um criminoso. “Entendo que não houve constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus, quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado", disse o juiz na decisão.
Em nota ao UOL, o MP se manifestou em defesa de “uma reforma que levasse a um tipo penal entre importunação e estupro”. Segundo a instituição, “tecnicamente, o que foi noticiado não se caracteriza como estupro. Ainda assim, recomenda-se, respeitando o princípio que assevera ‘em dúvida, pró-sociedade’, que, no início da apuração, inscreva-se a conduta na tipificação mais grave e, ao longo do inquérito, se esclareça o que efetivamente ocorreu”, afirmou.
Na nota de hoje, o Ministério Público cita o artigo 127 da Constituição Federal para salientar que ele “garante aos membros do Ministério Público total independência funcional no exercício de suas atividades na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, razão pela qual “vem a público manifestar seu apoio ao promotor Márcio Takeshi Nakada.”
O texto afirma ainda que a Constituição garante aos promotores a atuação independente diante das pressões da sociedade, em uma possível referência às críticas à atuação do promotor no caso. “A independência funcional inscrita na Carta Magna é uma garantia para a sociedade, uma vez que permite aos promotores de Justiça uma atuação técnica e absolutamente infensa a pressões de qualquer natureza. A opinião pública pode estar certa de que os membros do Ministério Público de São Paulo, como mostra a história da instituição, continuarão a defender, intransigentemente, um valor inegociável para as sociedades democráticas: o respeito a lei!”
Também em nota pública divulgada nesta sexta-feira (1º), o TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) defendeu a atuação do juiz no caso, afirmando que "a aplicação da lei não admite analogias e integrações em desfavor do réu". No entanto, a direção da instituição informou que a decisão do magistrado está sujeita a recurso judicial e que vai propor alterações legislativas que tipifiquem com mais rigor atos como o cometido pelo suspeito de estupro.
Posição da PGJ não é unanimidade entre promotores
A posição institucional do Ministério Público sobre o entendimento de Nakada no caso, entretanto, não é unânime entre os promotores de Justiça.
“A análise do caso concreto compete ao juiz, mas, em princípio, isso foi um estupro –portanto, deveria ser mantida a prisão do suspeito. Esse é um crime que causa consequências psicológicas para a vítima e pode causar consequências para a saúde, dependendo do caso e do risco de contaminação. Fora isso, a reiteração da conduta já justificaria a prisão para garantir a ordem pública e para evitar que outras mulheres sejam atacadas”, defendeu a promotora do Núcleo de Gênero do MP, Valéria Scarance.
Para a promotora, a posição de Nakada “não correspondeu ao que vem sendo adotado por um núcleo especializado do próprio MP”. “Os requisitos para a prisão estavam presentes. Esse posicionamento, definitivamente, não é o mesmo do Núcleo de Gênero e Violência contra a Mulher”.
À reportagem, outro promotor, também da área criminal, lamentou a decisão do colega, mas preferiu não se identificar. “Foi um erro grotesco não ter sido pedida a prisão preventiva do suspeito. A nova redação dada ao Código de Processo Penal é muito clara ao tratar do estupro de vulnerável –e era o caso da vítima do ônibus, já que ela estava dormindo e sem chance de defesa”, disse o promotor, que completou: “O artigo 217-A estipula como pena por ‘ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos a reclusão de oito a 15 quinze anos’. E o parágrafo primeiro é explícito: ‘Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.’ Era o caso da passageira”, afirmou.
Indagado sobre a divergência de posicionamento entre os próprios promotores, o MP se manifestou sobre a “dificuldade para enquadrar o fato, uma vez que a aplicação da lei pressupõe tipificação penal que nem sempre corresponde à conduta verificada”.
Juiz que liberou suspeito também recebeu manifestações de apoio
Também o juiz do caso foi defendido em notas publicadas entidades de classe ou ligadas ao direito sobre a conduta no julgamento. Para a Apamagis (Associação Paulista de Magistrados), a repercussão na imprensa e nas redes sociais sobre a decisão de Souza Neto representou um ataque "de maneira vil e covarde" a ele. "Não é possível assistir inerte ao linchamento moral a que foi submetido o magistrado, por pessoas sem nenhum compromisso com a verdade dos fatos e que insuflaram parcela expressiva da população, agredindo injustamente um juiz que dignifica a toga”, definiu a nota.
O IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) também defendeu o magistrado ao afirmar ver "com preocupação" os "ataques à decisão judicial que garantiu a liberdade de um acusado de crime de estupro."
"A execração pública do magistrado coloca em xeque sua independência judicial. O Judiciário não pode ficar refém da onda punitiva, que teima em colocar juízes sob suspeita toda vez que decidem a favor do réu. No caso concreto, a decisão se deu depois de manifestação do Ministério Público favorável à soltura do acusado, que ainda não foi julgado, o que só reforça a plausibilidade jurídica da decisão. Por mais repugnante que possa ser a acusação, ao magistrado não cabia outra providência. Se a lei é omissa, não é papel do juiz ampliar seus limites, mas sim garantir ao acusado um processo justo."
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