Juiz que autorizou "cura gay" diz que decisão teve interpretação "equivocada"
O juiz da 14ª Vara Federal no Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho, divulgou nota nesta quinta-feira (21) em que criticou a repercussão sobre a liminar que, assinada por ele semana passada, autoriza psicólogos a oferecerem terapia de “reversão sexual” –popularmente conhecida como "cura gay" –sem que sejam punidos pelo CFP (Conselho Federal de Psicologia). O assunto ganhou forte repercussão junto à opinião pública.
A liminar atendeu em parte ação popular impetrada por um grupo de psicólogos que pedia a derrubada total de uma resolução de 1999 pela qual o conselho veta esse tipo de tratamento. Uma das signatárias da ação é a psicóloga Rozangela Alves Justino, que processou o colegiado do CRP por conta de censura profissional imposta a ela por oferecer a terapia a seus pacientes.
Na nota, Carvalho afirma que seu despacho em nenhum momento tratou a homossexualidade como doença. "Em nenhum momento este magistrado considerou ser a homossexualidade uma doença ou qualquer tipo de transtorno psíquico passível de tratamento", diz ele, para quem a "interpretação e a propagação" de sua decisão foram equivocadas.
O juiz explica que quaisquer questionamentos sobre sua decisão devem ser feitos judicialmente e avisa que negará todos os pedidos de entrevistas submetidos a ele por ser vedado a um magistrado opinar sobre suas sentenças.
"Considerando ser vedado ao magistrado manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento (...); considerando existir meio processual adequado à disposição das partes para pedir o esclarecimento de eventuais obscuridades ou contradições em qualquer decisão judicial (...); este magistrado vem a público declinar dos convites a ele formulados por diversos meios de comunicação no intuito de debater ou esclarecer seu posicionamento acerca da questão", escreve Carvalho.
Ele diz ainda esperar "a compreensão do público em geral, em especial daqueles que não tiveram a oportunidade de ler, em sua integralidade, a referida decisão, que se encontra disponível no sítio do TRF1”.
CFP vai recorrer da decisão
No despacho, com data do último dia 15, o juiz federal escreveu: "A fim de interpretar a citada regra em conformidade com a Constituição, a melhor hermenêutica a ser conferida àquela resolução deve ser aquela no sentido de não provar o psicólogo de estudar ou atender àqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura".
Esta semana, um dos diretores do CFP, Pedro Paulo Bicalho, afirmou que a entidade deve recorrer nos próximos dias da decisão por entender que ela é prejudicial não apenas à categoria –hoje, em número de quase 2.800 psicólogos em todo o Brasil --, como à população LGBT.
Um dos argumentos do recurso será o de que a decisão pode influenciar e até aumentar a intolerância à população LGBT, sobretudo entre familiares, e aumentar os casos de violência. Atualmente, o Brasil é o país que mais mata cidadãos LGBT no mundo: cerca de 300 assassinatos por ano.
Para Bicalho, “um dos efeitos mais perversos” da decisão judicial poderá ser o aumento da violência, especialmente a violência familiar contra o LGBT.
“A possibilidade de entender a homossexualidade como algo que possa ser revertido coloca, de uma forma muito evidente, mais estigmas de exclusão e até de violência diante contra um suposto ‘problema’ que deva ser exterminado. Esse é o grande efeito desse tipo de decisão, pois chancela algo que não tem qualquer comprovação científica e que já embasa, em muitos casos, a violência dentro de casa contra o LGBT”, explicou o diretor.
OMS tirou homossexualidade de lista internacional de doenças em 1990
De acordo com o diretor, que é psicólogo há 20 anos e também leciona na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), os membros do conselho ficaram “muito decepcionados” com a liminar, até porque, salientou, o tratamento é proibido por resolução da entidade desde 1999; desde 1990, a OMS (Organização Mundial da Saúde) retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças.
“Essa é uma decisão bastante paradoxal, porque ela concede o que o grupo de psicólogos pediu na ação popular, que era a cassação da resolução, mas a transforma em uma letra morta ao solicitar que a interpretemos de um modo bastante diferente do espírito com que ela foi criada”, destacou o diretor do CFP, para completar: “Isso autoriza as terapias de ‘reversão sexual’, o que não podemos admitir porque a homossexualidade não se configura nem como doença, nem como desvio –e se não tem desvio, não há nada a ser reorientado. É a expressão legítima da sexualidade como qualquer outra”.
Para o diretor, a reação de setores da sociedade – como de políticos e artistas –contra a decisão liminar deve fortalecer o pleito do CFP. “Precisamos de apoio popular, de pessoas se manifestando, conversando sobre isso. É o que deve colocar, esperamos, a Justiça Federal de uma mais cuidadosa ao analisar o pedido de cassação dessa liminar. Quando um juiz solicita que interpretemos de outro modo a resolução de um órgão normativo, ele usa do poder do Judiciário para produzir uma referência técnica que não cabe a ele. Somente a psicologia pode regulamentar um tratamento psicológico; não cabe ao Judiciário dizer como um psicólogo deve tratar”, concluiu.
Processos sobre cura gay são minoria no CFP
Segundo dados do conselho, em cinco anos (2012 a 2017), a entidade abriu 260 processos éticos. Desses, apenas três têm ligação direta ou indireta com a resolução que veta a tentativa de “cura gay”.
No CRF, o entendimento é o de que a resolução que veta o tratamento liberado pelo juiz do DF tem um caráter muito mais educativo que necessariamente punitivo – o que os próprios números, afirma a entidade, revelam. É como se resolução “garantisse a preservação ao direito individual que todo ser humano tem de ter sua orientação sexual e manifestá-la como achar mais conveniente”, diz o conselho. Na prática, um dos efeitos do documento é a eliminação de obstáculos a casais LGBT que queiram adotar filhos –uma vez que a orientação sexual deles não representaria uma doença mental digna de tratamento.
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