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Justiça reconhece duas mães em certidão de nascimento de garota em Alagoas

Kivia Manuella Marques (de rosa), a mãe adotiva Maria José Marques Leite (de preto) e irmãs adotivas durante seu aniversário de 15 anos, comemorado em outubro - Arquivo pessoal - out.2017
Kivia Manuella Marques (de rosa), a mãe adotiva Maria José Marques Leite (de preto) e irmãs adotivas durante seu aniversário de 15 anos, comemorado em outubro Imagem: Arquivo pessoal - out.2017

Aliny Gama

Colaboração para o UOL, em Maceió

22/12/2017 04h00

Uma adolescente de 15 anos, que mora em um povoado em Palmeira dos Índios (AL), terá os nomes de duas mães na certidão de nascimento: a biológica e a adotiva. A Justiça atendeu ao pedido da jovem e de sua família adotiva, que sonhavam em ter o nome dos pais adotivos, que são seus tios, em seus documentos.

Agora, com o julgamento do pedido dado como procedente pelo juiz José Miranda Santos Junior, da 1ª Vara de Infância e Juventude de Palmeira dos Índios, a adolescente tem, oficialmente, duas mães. Como na certidão de nascimento não consta o nome do pai biológico, ela terá apenas o nome do pai adotivo.

A família aguarda a ordem judicial ser enviada para o cartório de União dos Palmares para acrescentar os nomes à certidão de nascimento da adolescente.

Em sua sentença, o magistrado destacou a importância de aplicar o direito de acordo com a realidade vivida pelas pessoas e “em especial quanto ao direito de família, que é ramo que permite maior flexibilidade na aplicação de normas, em razão das constantes mudanças do conceito de família na sociedade contemporânea”.

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Kivia (de rosa) durante aniversário de 15 anos; a mãe biológica não foi à festa
Imagem: Arquivo pessoal - out.2017

A adolescente Kivia Manuelle Marques, 15, conta que receber o nome dos pais adotivos, Maria José Marques Leite e Zaldirom Pereira Leite, acrescido aos seus documentos é um das retribuições que ela pode dar a quem a criou desde que nasceu. A jovem foi deixada na casa dos tios maternos com três dias de nascida porque a mãe biológica, ainda de resguardo, disse que não tinha condições de criá-la, deixou-a com a tia e foi embora.

Maria José relata que nunca escondeu a origem de Kivia e que os preceitos que a filha foi criada tiveram como base o amor à família. Kivia tem duas irmãs adotivas, de 30 e 33 anos, e é considerada o xodó da família. Da parte da mãe biológica, que casou com um homem depois do seu nascimento e mora em Maceió, ela tem também duas irmãs.

“As irmãs de Kivia, minhas filhas, fazem tudo que ela quer, dentro das nossas possibilidades. Dão até mais coisas a ela que os próprios filhos. Hoje como as coisas estão mais fáceis, Kívia tem mais coisas que as irmãs e, mesmo assim, não é motivo de briga ou ciúmes. Todas nós nos amamos por igual”, disse Maria José, que contou que ficou viúva em 2015 e a companhia dela é a filha adotiva. As outras duas filhas se casaram e moram com seus respectivos maridos.

"Multiparentalidade"

A decisão pela multiparentalidade ocorreu após o pedido da família adotiva da adolescente, que ingressou com ação judicial por meio da Defensoria Pública de Alagoas relatando que a jovem almejava ser reconhecida oficialmente como filha da tia materna.

Segundo a Defensoria Pública de Alagoas, tempos depois da adoção não-oficial da garota, os pais adotivos decidiram formalizar o procedimento, com o consentimento da mãe biológica e a aprovação dos filhos do casal, que já são maiores de idade. No entanto, a morte do pai afetivo provocou a paralisação do processo.

A Defensoria Pública explicou que, para dar continuidade ao processo, solicitou, inicialmente, destituição de poder familiar da mãe biológica para que a tia materna da adolescente pudesse tornar-se sua mãe. Mas, durante o processo, foi constatado que a jovem tratava a mãe biológica e a mãe adotiva como suas mães, pois mantinha vínculos afetivos tanto com a tia que a criava quanto com a mãe biológica, que tinha seu nome registrado na certidão de nascimento.

Para resolver o problema, a defensora pública Bruna Pais alegou à Justiça em seu pedido de multiparentalidade que “em atenção aos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, do respeito à diferença, do pluralismo familiar, da proibição do retrocesso social e da proteção integral dos interesses de crianças e adolescentes, deferisse a adoção à autora”, sem destituir do poder familiar a mãe biológica, de modo que a adolescente passasse a ser filha das duas, tendo em seu registro de nascimento dupla maternidade.

É necessário, pois, que se acompanhem as mudanças, em especial nas relações familiares, que se pautam no amor e, por isso, transcendem formalidades e põem no chão noções obsoletas e preconceituosas de que antes embasavam leis e a jurisprudência nacionais."

Bruna Pais, defensora pública

A defensora pública explica que a multiparentalidade é reconhecida pela jurisprudência recentemente, podendo ser definida como a possibilidade jurídica de, conservando-se o vínculo biológico entre genitor e filho, haver a manutenção ou o estabelecimento de vínculos parentais entre esse filho e terceira pessoa, com quem este detém consolidada relação de afeto.

“Fiquei muito feliz em saber que Kivia terá nos documentos o meu nome e do meu marido. Até chorei porque era um desejo nosso e ele não está mais aqui para compartilharmos essa felicidade”, afirmou Maria José.

Entretanto, a família pretende recorrer da decisão para que o nome da mãe biológica seja retirado da certidão de nascimento da jovem. A família alega que não acha justo a mãe biológica, que “nunca participou de nada financeiramente nem presencialmente constar o nome na certidão de nascimento dela”.

“Fizemos a festa de 15 anos dela e a mãe biológica não veio. Disse que não estava com o dinheiro da passagem de ônibus. Ela não se esforça como faz pelas outras filhas que moram com ela e o marido. Kivia a chama de mãe porque ensinei, mas a mãe quem cria, que tem a responsabilidade, quem toma as decisões e quem a sustenta sou eu junto com as minhas outras duas filhas”, destaca Maria José.

A família disse que após o recesso do Poder Judiciário de Alagoas, que começou na última quarta-feira (20) e vai até o dia 2 de janeiro, vai à Defensoria Pública solicitar uma nova ação contestando o nome da mãe biológica na certidão de nascimento da adolescente.