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"Restos de corpos": morador da Rocinha relata terror em meio a tiroteio

Bruno Favoretto

Do BOL, em São Paulo

31/01/2018 11h18Atualizada em 31/01/2018 11h22

O dia 25 de janeiro deste ano foi marcado por um tiroteio intenso entre PMs e criminosos na favela da Rocinha, em um confronto que durou quase o dia inteiro e deixou um rastro de violência na comunidade da zona sul carioca.

Um morador da região, que fez um relato assustador no Facebook sobre o dia 25 de janeiro, contou em entrevista ao BOL que há 28 anos mora na Rocinha, desde que nasceu, e nunca havia sentido tanto medo.

Rafael* relatou que quatro tiros estilhaçaram a janela de sua casa, e ele e a esposa se arrastaram pelo chão em busca de abrigo na cozinha. O rapaz residia havia dois anos nessa casa, na rua 2, uma região apelidada de Pocinho e que virou palco do confronto do dia 25.

    Após o terror vivido naquele dia, ele e a mulher se mudaram do local. "Tudo que vivemos depois disso é difícil de relatar. Parecia que o mundo estava acabando. Que lugar é esse? Por que nossa vida vale tão pouco?", diz o rapaz.

    "Desde o dia da invasão [de facções criminosas em disputa pelo tráfico de drogas], em setembro do ano passado, nós pensávamos em nos mudar, porque nossa casa ficava em uma rua que ligava a parte alta e baixa da favela, um local com muitos confrontos entre traficantes e a polícia", explica Rafael.

    A Rocinha viu os tiroteios se intensificarem nos últimos dias, dois meses após a prisão do traficante Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157.

    Momentos de terror

    Sobre o dia 25, o morador da Rocinha disse que, após o tiroteio diminuir, ele ouvia pelos becos os pedidos de ajuda de pessoas feridas. "A cena era chocante. Um mar de cápsulas, carcaça de bombas, corpos e restos de corpos, casas pegando fogo", conta.

    Janela da casa do morador da Rocinha com marcas de tiros - Reprodução / Facebook - Reprodução / Facebook
    Janela da casa do morador da Rocinha foi atingida por tiros
    Imagem: Reprodução / Facebook
    A Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro informou o saldo da operação do dia 25 de janeiro: três criminosos, dois policiais e um morador feridos. No entanto, Rafael diz acreditar que a conta da secretaria esteja errada. "Só no beco em que eu morava havia quatro mortos", diz, afirmando que todos eram envolvidos com o tráfico de drogas.

    Ainda de acordo com os dados da secretaria, o saldo da operação desde o dia 18 de setembro, quando começaram as seguidas ações policiais na Rocinha, até o dia 29 de janeiro é o seguinte: 83 suspeitos foram presos, 37 criminosos mortos, um policial morto, uma mulher morta (a turista espanhola que visitava a comunidade e teve o carro alvejado pela polícia) e dez moradores feridos.

    Rocinha pacificada?

    Atuando como produtor cultural, Rafael acompanhou o processo de implantação de bases UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) em outras favelas, além da Rocinha, como nos complexos do Alemão e da Penha.

    Diferentemente do que ocorreu nas duas últimas, que viram a criminalidade diminuir, a Rocinha viveu apenas um breve período de calmaria, que começou a ruir com o desaparecimento do pedreiro Amarildo, em 2013, após uma operação policial na favela.

    "Eu tinha uma boa expectativa de viver em uma favela pacificada. No começo até foi assim. Não víamos traficantes armados, não tínhamos medo. Mas, com o tempo, a ocupação se mostrou artificial, os traficantes bolaram novas estratégias e os confrontos voltaram", diz Rafael.

    A favela não é um beco sem saída

    O rapaz conta que os tiros do dia 25 não estraçalharam apenas sua janela: "Eu nunca mais serei o mesmo. Eu nasci de novo e decidi: quero a tutela da minha favela", afirma.

    Ele diz acreditar que seja possível mudar esse cenário de terror. "Parece que ninguém quer saber de nós. Então temos que ter mais representatividade, nos organizar, ocupar os espaços de gestão onde decidem as coisas para nós, decidem as coisas para a favela. Temos que correr atrás dos nossos direitos", conclui o morador da Rocinha.

    A favela da zona sul carioca virou palco de intensos tiroteios desde setembro de 2017, quando Antônio Bonfim Lopes, o Nem (ex-chefe do tráfico na Rocinha e que está preso desde 2011), ordenou que seus comparsas retomassem os pontos de tráfico de seu sucessor, o traficante Rogério Avelino da Silva, o 157.

    Nem - Marcelo Sayo/EFE - Marcelo Sayo/EFE
    Nem é o antecessor de 157
    Imagem: Marcelo Sayo/EFE
    De acordo com informações de testemunhas ouvidas pela polícia, Nem teria ficado em desagrado com 157 após descobrir que o sucessor estava extorquindo dinheiro de moradores da favela, cobrando taxas de gás e tributos adicionais de mototaxistas e comerciantes.

    Com a intensificação do confronto entre os traficantes rivais, a polícia montou uma megaoperação que resultou na prisão de Rogério 157 em dezembro.

    Mesmo com seus líderes presos, os criminosos que continuam na região continuam na disputa pelo controle do tráfico. José Carlos de Souza Silva, conhecido como Gênio, assumiu o controle do tráfico na região. Assim como o "chefe" Rogério 157, Gênio era da facção Amigos dos Amigos (ADA), mas migrou para o Comando Vermelho (CV) após o racha entre Nem e 157.

    * Nome trocado a pedido do entrevistado