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Com violência extrema, facção do CE controla presídio, espalha medo e tortura até membros

30.jan.2018 - Aviso da facção GDE (Guardiões do Estado) em muro de bairro de Fortaleza - Jarbas Oliveira/Folhapress - Jarbas Oliveira/Folhapress
Aviso da facção GDE (Guardiões do Estado) em muro de bairro de Fortaleza
Imagem: Jarbas Oliveira/Folhapress

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

02/02/2018 04h00

Responsável pelo ataque a uma casa de shows que matou 14 pessoas em Fortaleza no último sábado (27), a facção criminosa GDE (Guardiões do Estado) se tornou um ponto de desequilíbrio não só nas ruas, mas também no sistema prisional cearense. O grupo cresce e se consolida cada dia mais no Estado por meio de uma violência extrema pouco comum até mesmo para organizações criminosas.

A GDE, que também é chamada de 745 (referente à ordem das letras GDE no alfabeto), atua somente no Ceará, mas já controla muitos pontos de venda de drogas na periferia.

Assim como ocorreu com outras novas facções do Norte e do Nordeste, o grupo surgiu como forma de rebelião contra o envio, pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) e pelo CV (Comando Vermelho), de recursos do tráfico de drogas e de assaltos para outros Estados.

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A facção começou a se organizar ainda em 2014, mas foi "oficialmente" chancelada há dois anos. O estatuto da organização obtido pelo UOL é de 1º de janeiro de 2016 e traz 15 itens que pregam o respeito entre os membros, a luta pelos direitos dos presos e a "justiça para os injustiçados."

Antes mesmo da chacina de sábado, a GDE já fazia parte de relatos de assassinatos, torturas e até expulsão de moradores de conjuntos habitacionais. A lei da violência extrema também se aplica dentro dos presídios, com ameaças a agentes penitenciários e tortura entre integrantes do próprio grupo. Por causa disso, cadeias do interior já estão se recusando a receber detentos da facção para evitar mortes.

O método violento se verificou mais uma vez nesta quarta-feira (31). Durante inspeção feita no maior presídio dominado pela facção --a Casa de Privação Provisória de Liberdade (CPPL 2), em Itaitinga, na Grande Fortaleza, onde vivem pouco mais de mil detentos--, três presos estavam com braço quebrado. Mesmo sendo um local apenas com presos da facção, o grupo julga e pune integrantes em retaliação a ações de terceiros ligados e ele.

"Se sua família tem alguém de outra facção ou mora em um bairro controlado por outro grupo, eles quebram os braços em retaliação", conta a advogada Ruth Leite Vieira, presidente da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, citando que além desse há outros dois presídios destinados exclusivamente a presos do grupo. 

Presos criam regras

Dentro da CPPL 2, os presos ditam todas as ordens, e agentes penitenciários não entram. Com celulares, eles filmam ameaças e seus rituais, como em um vídeo obtido pelo UOL supostamente feito em abril de 2017, no qual presos rezam e fazem grito de guerra em defesa do grupo.

Agentes ainda relatam ameaças constantes e de várias formas, como por meio de inscrições feitas nas paredes do presídio. No dia 16, uma bomba artesanal foi jogada contra os agentes, que prestaram queixa à polícia.

Até a distribuição de refeições é feita pelos presos --um detento vem até a portaria e leva a comida aos colegas. Na prática, é a GDE quem decide, por exemplo, quem tem direito a se alimentar, a hora do recolhimento às celas, critérios de controle e as punições por atos considerados de indisciplina. 

"A situação está assim desde as rebeliões de 21 de maio de 2016. Não houve uma reforma da unidade, ela ainda está deteriorada; houve apenas pequenos paliativos. Como as celas não abrem nem fecham, os presos entram e saem à vontade. Não há rotina ou disciplina. Os agentes não entram nas alas", afirma Ruth.

Dez presos foram mortos na manhã desta segunda-feira, 29, durante rebelião na Cadeia Pública de Itapajé, a 125 km de Fortaleza - Wellington Macedo / Estadão Conteúdo - Wellington Macedo / Estadão Conteúdo
Retaliação à chacina do dia 27 deixou 10 mortos na Cadeia Pública de Itapajé no dia 29
Imagem: Wellington Macedo / Estadão Conteúdo

Terceira maior e a mais assassina

O Ceará possui uma população carcerária de 34 mil presos e, segundo o último Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), divulgado em dezembro pelo Ministério da Justiça, dois em cada três presos no Estado são provisórios e aguardam julgamento para cumprir pena.

Segundo estimativa do Conselho Penitenciário do Ceará, a GDE possui 2.000 integrantes dentro dos presídios. O número só é menor que o de duas outras facções: o PCC, que possui cerca de 5.000 membros, e o CV, com aproximadamente 4.000. A FDN (Família do Norte) tem em torno de 500 filiados.

Apesar de ser a terceira em número de integrantes presos, a facção é a que causa mais terror dentro do sistema. "Não temos números exatos, mas sem dúvida a GDE é a que mais mata no sistema prisional", diz Claudio Justa, presidente do Conselho Penitenciário do Ceará.

Quando matam inimigos, os membros da GDE costumam arrancar a cabeça, retirar o coração e cortar as mãos das vítimas. Em muitos casos, a morte é filmada, e as imagens circulam em redes sociais.

"Como ela é menor, tem menos articulação no âmbito nacional, os membros tendem a maior crueldade e ações mais truculentas dentro e fora dos presídios para impor respeito pelo terror. Então, a GDE é um fator de desequilíbrio para a própria dinâmica das disputas das facções", explica Justa.

Medo de receber presos

Devido à violência extrema do grupo contra outras facções, é comum ver ordens de juízes que vetam integrantes da GDE em cadeias do interior. A última das decisões, em 11 de janeiro, foi do juiz Magno Rocha Mota, da comarca de Beberibe. Ele determinou "que a Cadeia Pública de Beberibe se abstenha de receber presos que se declarem integrantes da facção Guardiões do Estado e facções associadas."

Em setembro, a Cadeia Pública de Aquiraz também teve ordem judicial para separar os presos da GDE e do CV. Já o juiz de Várzea Grande vetou o ingresso.

O CV é o maior inimigo da GDE. Com o PCC, o grupo cearense tem um frágil acordo de paz, mas que é visto pelas autoridades como impossível de ser mantido.

"A ideia agora é a separação radical [de presos]. Não é mais seguro manter unidades com internos de mais de uma facção. O sistema penitenciário está muitíssimo tenso", afirma Cláudio Justa.

"Essas facções também reivindicam melhores condições carcerárias, mas mesmo assim não entram em alinhamento nenhum", conta Justa.

A Sejus (Secretaria de Justiça do Ceará) foi procurada pela reportagem para comentar a questão, mas informou que não iria se manifestar por "questões de segurança."

Guerra fora das cadeias

A guerra entre facções se estende para fora dos presídios e contribuiu para que o número de assassinatos no Estado batesse recorde em 2017, com 5.134 casos. Em duas décadas, esse índice cresceu 545%.

Segundo o pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da UFC (Universidade Federal do Ceará), o sociólogo Luz Fábio Paiva, o banho de sangue é impulsionado pela disputa das facções por áreas e venda de drogas, o que causa medo especialmente na periferia das grandes cidades.

No dia 4 de janeiro, um grupo de foragidos do sistema prisional mandou expulsar cerca de 300 famílias residentes no Barroso II, na zona Sul de Fortaleza. Pichações nos muros deixavam claro que "se não sair, vai morrer." Outros casos também já foram registrados em vários pontos.

"O fato emblemático dessa situação é que, aparentemente, as facções que atuam no Estado não disputam apenas os mercados ilegais de drogas e armas, mas realizam uma verdadeira 'guerra' de eliminação do outro. Esta situação tem causado diversos problemas para as populações mais pobres que vivenciam situações de expulsão de suas casas, assassinatos em virtude da não-cooperação, ameaças por serem suspeitas de 'simpatizar' com grupo rival, torturas e julgamentos arbitrários, entre outros sofrimentos sociais e violações de direitos", aponta Paiva.