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Polícia pode atirar de helicópteros em ações de combate ao crime no Rio?

Marcas de tiros no chão do Complexo da Maré são sinalizadas com tinta - Reprodução
Marcas de tiros no chão do Complexo da Maré são sinalizadas com tinta Imagem: Reprodução

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio

29/06/2018 04h00

Disparos efetuados do alto, possivelmente do helicóptero blindado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, levaram a ONG Redes da Maré a contabilizar mais de cem marcas de tiros no chão em duas das comunidades do Complexo da Maré, na zona norte carioca, na quarta-feira passada (20).

A iniciativa surgiu como forma de protesto. Moradores se mobilizaram para denunciar o emprego de força letal a partir das aeronaves, e a Defensoria Pública chegou a pedir à Justiça, sem sucesso, que proibisse esse tipo de recurso.

Tiros supostamente disparados por helicópteros da polícia em comunidades cariocas já haviam sido relatados outras duas vezes somente neste mês. No próprio Complexo da Maré, em uma ação realizada em 11 de junho, e na Cidade de Deus (zona oeste), três dias antes, de acordo com pesquisadores do Observatório da Intervenção (grupo independente criado para acompanhar o trabalho das forças de segurança durante a intervenção federal no RJ).

Mas foi no dia 20 que o assunto ganhou visibilidade. Durante a operação na Maré, o estudante Marcos Vinicius da Silva, 14, morreu ao ser baleado a caminho do colégio --além do adolescente, outros seis homens que teriam envolvimento com o tráfico foram mortos.

A hipótese inicial indicava que Marcos Vinícius poderia ter sido atingido por um dos disparos feitos pelo helicóptero da polícia. Posteriormente, no entanto, laudo do IML (Instituto Médico-Legal) mostrou que o tiro perfurou o corpo da vítima no sentido horizontal. A família alega que o disparo teria sido feito por um veículo blindado terrestre, conhecido popularmente como "caveirão".

No IML, mãe de estudante mostra uniforme sujo de sangue

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Pressionada pelas denúncias de moradores e repercussão do caso, a Polícia Civil decidiu promover reuniões periódicas para estudar a criação de um protocolo referente ao uso de helicópteros em operações. Após o primeiro encontro, que ocorreu na segunda (25), o diretor das delegacias especializadas da capital, delegado Fábio Barucke, defendeu o emprego de aeronaves e disse que "de forma alguma o helicóptero está autorizado a expor as pessoas ao perigo".

Segundo ele, os policiais podem atirar em situações que demandam legítima defesa, isto é, caso sejam atacados, ou para garantir a segurança de terceiros (como eventuais reféns).

Com a chegada do helicóptero em situações de conflito, os marginais que estão ali se posicionando contra as operações, cessam os tiros e eliminam a resistência. Por isso, a utilização do confronto se faz necessária, para eliminar riscos não só para o policial como para a população.

Fábio Barucke, diretor das delegacias especializadas da capital

Para a pesquisadora Silvia Ramos, doutora em Violência e Saúde pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) e membro do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Universidade Cândido Mendes), a resposta do delegado diz respeito ao "protocolo básico e elementar" das polícias: só efetuar disparos como último recurso.

Ela avalia, no entanto, que tal premissa não se aplica a situações envolvendo helicópteros no contexto de repressão ou controle da violência urbana.

Isso é regra de treinamento de todas as polícias no mundo: só se atira em legítima defesa ou em defesa de terceiros. Não era o caso da Maré. O que a gente tem visto, e isso tem sido filmado por amadores, são cenas com evidências óbvias no sentido de mostrar que havia gente dentro do helicóptero atirando para baixo.

Silvia Ramos, integrante do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Universidade Cândido Mendes)

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Silvia disse rejeitar o argumento de que policiais tripulados teriam atirado em resposta a disparos efetuados por criminosos contra a aeronave. "Pelas gravações, é incontestável que os tiros são de cima para baixo. A ideia de que os policiais estavam respondendo a alguém que poderia estar ameaçando é um pouco questionável. O helicóptero estava ali em uma posição de ataque, e não de defesa", declarou.

Para o antropólogo e ex-capitão do Bope (Batalhão de Operações Especiais), Paulo Storani, a raiz do problema está justamente na falta de um "protocolo preciso e transparente" que determine os limites da ação policial no emprego de aeronaves. Segundo o especialista em segurança, dada a ausência de uma norma específica, os policiais costumam argumentar que os tiros são permitidos caso um helicóptero seja alvejado. Ele disse que se opõe a esse posicionamento.

Algumas pessoas na polícia até ficam chateadas comigo. (...) Mas se há disparos contra a aeronave, o certo seria deslocar o helicóptero do local ou pegar uma altitude maior, que garanta a segurança, ou até mesmo fazer um pouso de emergência em algum local que haja o suporte necessário e possibilidade de concretizar o pouso em terra.

Paulo Storani, ex-capitão do Bope

Na visão de Storani, o helicóptero jamais poderia ser utilizado como uma "plataforma de tiro", pois "a característica do tiro em área urbana é diminuir o risco de efeito colateral, ou seja, evitar a morte de pessoas inocentes".

"Na aeronave, você tem questões como a distância do alvo e a vibração. A oscilação natural do helicóptero durante o sobrevoo, não há estabilidade suficiente para fazer o disparo. Por esse motivo, o policial deixa de fazer um disparo simples e pontual para fazer uma rajada [sequência de tiros]. Com a rajada, a possibilidade de pelo menos um tiro acertar o criminoso é maior. Mas também aumenta a possibilidade de acertar uma pessoa inocente."

O ex-capitão do Bope afirma que, em geral, o helicóptero deve ser utilizado como uma "plataforma de observação", que permita uma visão privilegiada de monitoramento de forma a guiar as forças policiais em terra durante uma situação de conflito.

"Essa é a forma como as aeronaves são utilizadas no mundo todo. Você só efetua disparos em situações de guerra, como no Afeganistão, na Síria, no Paquistão, no Iraque, na Síria. São situações específicas que fogem completamente do caráter de um conflito urbano."

Storani declarou que é defensor da criação de um protocolo que estabeleça de forma clara a conduta do policial em situações como essa. Segundo ele, sem uma norma específica, o policial tripulado também está vulnerável. "Se ele puxa o gatilho e mata um inocente, a responsabilidade é dele. Há uma omissão da polícia e isso é o que mais incomoda. É uma covardia institucional."

A reportagem do UOL procurou na terça-feira (26) a Polícia Civil sobre o uso de helicópteros em operações, mas não houve retorno.

Questionada sobre a denúncia da ONG Redes da Maré em relação aos tiros que teriam partido da aeronave na última quarta, a Polícia Civil não respondeu objetivamente a essa questão --disse que está empregando "todos os esforços" para esclarecer a morte do estudante; que ouviu testemunhas e familiares da vítima e que deve realizar uma reprodução simulada (ainda sem data definida).

Um dia após a morte de Marcos Vinícius, a instituição havia dito, em nota, que "a utilização do helicóptero em operações, como as ocorridas na quarta-feira [20 de junho], se dá para a garantia da segurança de toda a população, entre eles, os moradores da comunidade envolvida e os policiais que desempenham suas atividades".