Peritos internacionais apontam graves falhas em laudos sobre chacina no Rio
Duas análises independentes, feitas por peritos estrangeiros a pedido da ONG HRW (Human Rights Watch), apontam graves falhas e omissões no trabalho dos peritos que analisaram os corpos de nove das 15 vítimas da chacina nas comunidades do Fallet, Fogueteiro e Prazeres, em Santa Teresa, zona sul do Rio. Segundo os analistas, há fortes indícios de que os PMs envolvidos no caso removeram os corpos das vítimas sem vida para o hospital, com o objetivo de desfazer a cena do crime.
A ONG de direitos humanos solicitou análises dos laudos cadavéricos das nove vítimas, feitos por por peritos do IML (Instituto Médico-Legal) do Rio —órgão que faz parte da estrutura da Polícia Civil.
A chacina do Fallet vai completar um ano no próximo sábado. Na ocasião, policiais militares do Batalhão de Choque —unidade de elite da corporação— mataram 13 pessoas nas comunidades. Nove das vítimas estavam em uma casa na comunidade do Fallet quando foram mortas. Os policiais alegam que houve confronto dentro do imóvel, mas parentes dos mortos, moradores e a Defensoria Pública afirmam haver indícios de execução.
No total, os sete PMs declararam ter atirado 94 vezes de fuzil dentro do imóvel. Ao menos 40 disparos atingiram os corpos das vítimas, segundo os laudos do IML.
A principal conclusão de ambos os estudos é de que é altamente provável que as vítimas tenham morrido no local do crime —algumas delas instantaneamente— o que coloca em xeque a versão de que foram removidas com vida para o Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro do Rio, apresentada pelos PMs.
Até o momento, as forças policiais do Rio inocentaram os policiais envolvidos na chacina: em IPM (Inquérito Policial Militar), a PM concluiu que não houve desvios de conduta por parte dos policiais do Batalhão de Choque envolvidos na ação. Já a Delegacia de Homicídios da Capital, responsável pela investigação do caso, também sugeriu o arquivamento do inquérito sem responsabilização dos policiais. No entanto, o pedido não foi aceito pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio), que ainda avalia o trabalho feito pela Polícia Civil e, em paralelo, conduz uma investigação própria a respeito do crime.
Falhas graves na perícia
O UOL teve acesso às duas análises feitas a pedido da HRW. Elas foram elaboradas pelo médico forense José Mario Nájera Ochoa, da Fundação de Antropologia Forense da Guatemala, e por três especialistas do IFEG (Independent Forensic Expert Group), entidade composta por 35 respeitados peritos independentes de 18 países. Ambos os laudos apontam falhas graves no trabalho da Polícia Civil —capazes de impedir a correta elucidação do caso— e apontam que os policiais removeram os corpos das vítimas já sem vida, uma estratégia clássica de policiais do Rio para desfazer a cena do crime.
Segundo a avaliação de Ochoa, há diversos problemas na análise feita pelos peritos do Rio. Embora os policiais aleguem que agiram em legítima defesa por terem sido atacados pelas vítimas, a Polícia Civil não solicitou que fosse feito o exame para procurar vestígios de pólvora nas mãos dos mortos —prova técnica que indicaria se eles atiraram ou não. Isso poderia confirmar ou fragilizar a versão dada pelos agentes do Batalhão de Choque.
O mesmo ponto foi duramente criticado pelos peritos do IFEG, que consideram a omissão "inaceitável". Em diversos momentos, eles citam a "má qualidade" ou mesmo a "absoluta falta de qualidade" das autópsias realizadas pelas autoridades do Rio.
"Os relatórios post-mortem não fornecem informações de que a coleta de evidências foi realizada e, principalmente, aquelas que são essenciais na investigação de casos relacionados a mortes por arma de fogo. Os relatórios afirmam que essas amostragens não foram realizadas porque não foram solicitadas pelas autoridades. A falta deste procedimento fundamental é inaceitável e uma forte limitação para obter conclusões", afirmam os analistas.
Outro problema sério é o fato de que os peritos do Rio não descreveram a trajetória dos tiros com base nas características das feridas encontradas nos corpos. "Não estão descritos os trajetos (caminho interorgânico) dos projéteis. O percurso do projétil deve ser descrito em relação aos planos do corpo", afirma Ochoa. Com isso, informações que ajudam a reconstituir a cena do crime se perdem: não se sabe se os tiros atingiram as vítimas de frente ou pelas costas; Tampouco avaliam se vieram de cima para baixo— informação que pode caracterizar que os baleados já estavam rendidos no momento em que foram atingidos.
Ambas as análises também criticam o tempo exíguo de duração dos exames nos cadáveres —que variou entre 30 e 40 minutos, segundo registros do IML— e a falta de registros fotográficos adequados. Há duas ou três imagens de cada corpo, número muito inferior ao mínimo necessário para o adequado registro do exame de cadáveres, segundo eles.
"Os exames post-mortem dos casos individuais, conforme indicado nos relatórios de autópsia, foram realizados em 30 a 40 minutos. Embora patologistas experientes possam realizar autópsias de maneira eficaz e rápida, esse período é claramente insuficiente para um exame post-mortem interno detalhado e adequado, para medições (por exemplo, comprimento / largura / altura), para documentação fotográfica adequada, registro de anotações , coleta de amostras, etc. Em 30 a 40 minutos, apenas observações muito básicas, superficiais e incompletas podem ser possíveis, em especial nos casos que envolvem múltiplas lesões traumáticas, como as que estão sob avaliação", dizem os peritos do IFEG.
Ochoa ressalta ainda que três dos nove laudos foram feitos simultaneamente, entre as 14h e as 14h40 pelo mesmo perito.
Há ainda contradições graves no laudo produzido sobre uma das vítimas. Em um primeiro momento, o perito responsável no IML afirma não ter encontrado vestígios de sangue ou fraturas no crânio. Porém, ao fornecer a conclusão de seus trabalhos, diz que há lesão "penetrante e perfurante no crânio".
Os peritos do IFEG fizeram duras críticas ao trabalho do IML do Rio. Segundo eles, o nível de análise é tão ruim que não deveria servir como prova perante a Justiça.
"As autópsias realizadas não atendem aos padrões científicos mínimos aceitáveis para o fornecimento de testemunhos de especialistas à Justiça e não são confiáveis", escrevem. Em outro trecho, afirmam que os laudos "não estão em conformidade com os padrões internacionais mínimos aceitáveis de um exame post-mortem de mortes relacionadas a armas de fogo, representando uma clara violação do post-mortem lege artis, não permitindo conclusões cientificamente fundamentadas sobre as questões formuladas"
As críticas dos especialistas internacionais ao trabalho dos peritos no caso da chacina do Fallet somam-se a outras críticas semelhantes feitas por autoridades brasileiras e ativistas pelos direitos humanos. Em entrevista ao UOL, em outubro, o então ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio, Pedro Strozenberg, já havia questionado a qualidade do serviço feito na ocasião.
"Eu acho que esse modelo de perícia que a gente tem é muito suscetível à interferência das forças policiais, porque está subordinada a elas. Em um caso com esse nível de repercussão, com um posicionamento prévio favorável pelas polícias e pelo governo do estado, [a perícia] está mais sujeita a uma influência externa", criticou.
O UOL busca um posicionamento da Polícia Civil a respeito das inconsistências apontadas pelos analistas internacionais sobre o trabalho dos peritos do IML e o incluirá assim que for enviado.
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