Dados contradizem Witzel: homicídio caiu mais onde polícia matou menos
Resumo da notícia
- A queda de homicídios no Rio foi maior em áreas onde houve redução das mortes cometidas por policiais
- A constatação, obtida a partir de levantamento feito pelo UOL, contradiz discurso do governador Wilson Witzel
- Para especialistas, a redução de mortes violentas seria ainda maior se a política de segurança não fosse baseada no confronto
Ao contrário do que vem afirmando o governador Wilson Witzel (PSC), o recorde de mortes cometidas por policiais no Rio em 2019 não tem relação com a redução no número de homicídios. Levantamento feito pelo UOL com dados do ISP (Instituto de Segurança Pública) mostra que a redução nas mortes violentas foi maior em áreas onde o número de mortes cometidas por policiais caiu, contradizendo o discurso oficial adotado pelo governo fluminense.
O levantamento comparou os registros de mortes por intervenção de agentes do Estado —quando policiais matam em supostos confrontos— e o indicador CVLI (crimes violentos letais intencionais), que soma os homicídios, os latrocínios e as lesões corporais seguidas de morte. Nas 55 áreas onde houve aumento das mortes cometidas por policiais, a redução foi de 15,2% nas mortes violentas— de 2.952 casos em 2018 para 2.503 no ano passado. Já nas 82 áreas onde a letalidade policial caiu, a queda de mortes violentas foi de 27,7% —de 2.228 vítimas em 2018 para 1.651 no primeiro ano da gestão Witzel.
Em números absolutos, as maiores quedas de mortes violentas ocorreram na área da delegacia de Guarus, em Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense, e em Santa Cruz, na zona oeste da capital —esta última área foi completamente dominada pela milícia em outubro de 2018. Em ambos os casos, houve redução também nas mortes cometidas por policiais.
Em diversos momentos de seu primeiro ano de mandato —e sobretudo quando era questionado por casos de inocentes mortos em operações policiais— Witzel repetiu o argumento de que a atuação das polícias "salvou vidas", atribuindo a redução das mortes violentas no estado diretamente à política de confronto adotada por sua administração —que registrou em 2019 a maior letalidade policial da história do Rio.
"A PM não atira nos civis, não atira nas pessoas. E, se acontece esse tipo de coisa, são erros que têm que ser investigados. Como foi o caso da menina Ághata. Foi investigado, tem aí a denúncia do Ministério Público e a Justiça vai seguir o seu caminho. São milhares de operações que foram realizadas, ninguém aqui deseja que qualquer pessoa venha a sofrer qualquer tipo de violência por conta das operações da polícia. Mas, se a polícia não agisse, em relação ao ano passado, teríamos mais de mil pessoas mortas", repetiu em entrevista à TV Globo no dia 30 de dezembro, ao ser questionado sobre o recorde de mortos pelas polícias do Rio.
Em novembro, ao reproduzir o mesmo tipo de argumentação, Witzel escreveu em seu perfil no Twitter que "nossa política de segurança tem mostrado, mês após mês, que estamos no caminho certo".
Desde a campanha eleitoral, Witzel vem defendendo uma política de segurança baseada no confronto contra traficantes —chamados por ele frequentemente de "narcoterroristas". Uma de suas principais propostas foi o "abate" de criminosos que portem armas de fogo, sintetizado por ele logo após ser eleito governador, em entrevista ao jornal Estado de S. Paulo.
"O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e... fogo! Para não ter erro."
Após operações com grande número de mortos pela polícia, Witzel endossou a ação policial, mesmo diante de denúncias de execuções e abusos.
Após a PM matar 15 pessoas em incursão nas comunidades do Fallet, Fogueteiro e Prazeres, em fevereiro do ano passado, o governador se apressou em afirmar que a conduta dos PMs "foi legítima". O mesmo tipo de declaração ocorreu quando a Polícia Civil matou oito pessoas no Complexo da Maré, em maio. As duas operações foram as mais letais ocorridas no Rio desde 2013, mostrou levantamento feito pelo UOL.
A sinalização de carta branca para a ação das polícias teve impacto administrativo logo no seu primeiro mês de governo, em janeiro de 2019. Em uma de suas primeiras medidas como novo ocupante do Palácio Guanabara, Witzel decidiu extinguir a Secretaria de Segurança, dando às polícias Civil e Militar o status de secretarias.
O UOL procurou Witzel para obter um posicionamento a respeito dos dados citados na reportagem e das declarações dadas anteriormente, mas não obteve resposta.
Análise: queda de homicídios seria maior sem violência policial
Especialistas em segurança pública ouvidos pelo UOL são unânimes ao afirmar que o recorde de mortes cometidas por policiais no Rio teve impacto negativo na redução dos homicídios no Rio. Para eles, se a letalidade policial não fosse tão alta —o que já vem ocorrendo desde 2018 no estado—, a redução de mortes violentas teria sido ainda maior. O indicador CVLI, de mortes violentas, teve queda de 20% —de 5.180 vítimas em 2018 para 4.154, em 2019.
"A redução dos homicídios não tem a ver com a política do tipo que o Witzel tem incentivado. A prova disso são esses resultados", afirma Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Temos uma correlação espúria [entre violência policial e redução de homicídios] sendo feita com interesses políticos. Afirmações sem base na realidade apenas para explorar o medo da população e surfar em uma onda político-ideológica
Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Na mesma linha, o sociólogo João Trajano Santo-Sé, coordenador do LAV (Laboratório de Análises da Violência) da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diz que não existe base para que o governador sustente que as mortes cometidas por policiais estão reduzindo índices criminais no Rio.
Esse argumento [de Witzel] não se sustenta. Não há nenhuma evidência empírica de que aumentando homicídio em uma área vai reduzir em outra. Assim como não há nenhuma evidência que justifique o aumento da letalidade policial em uma determinada região.
João Trajano Santo-Sé, coordenador do Laboratório de Análises da Violência da Uerj
Trajano destaca ainda que as maiores reduções de homicídios não coincidem com os pontos onde as polícias mataram mais. Para ele, a política de segurança baseada no confronto pode estar impedindo que os índices de crimes contra a vida caiam ainda mais no Rio.
"Essa política possivelmente está inclusive impedindo que a redução dos homicídios no Rio seja maior. Temos um quadro onde há tendência de redução de homicídios combinado com um aumento de homicídios cometidos pelo estado. O poder público não consegue dar segurança ao cidadão e continua sendo um vetor importante de produção de violência letal em áreas pobres", pontua.
Já o economista Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e organizador do Atlas da Violência —principal compilação de estatísticas criminais do Brasil—, diz que os dados obtidos pelo UOL corroboram evidências encontradas em outros estudos sobre letalidade policial.
Existe correlação entre letalidade policial e homicídios, mas ela é inversa. No local em que há mais violência policial vai haver mais violência em geral
Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea
Cerqueira também diz acreditar que a redução dos homicídios teria sido maior se as forças policiais do Rio não matassem tanto. Para ele, não há no horizonte um cenário de mudança nesse quadro a curto prazo.
"Nesse governo não vejo alternativa. Existe um compromisso eleitoreiro desse governador com essa política linha-dura, que não é nada de novo. Mas ele se comprometeu eleitoralmente com essa política", completa.
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