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Rio já teve água suja e resolveu; hoje não há equipamento, diz ex-diretor

Ponto de captação de águas na ETA do Rio Guandu na Baixada Fluminense (Rio) - Divulgação/Comitê Guandu
Ponto de captação de águas na ETA do Rio Guandu na Baixada Fluminense (Rio) Imagem: Divulgação/Comitê Guandu

Herculano Barreto Filho

Do UOL, no Rio

07/02/2020 04h01

Resumo da notícia

  • Problema com algas é comum e já foi resolvido antes pela Cedae, diz ex-diretor
  • Os raspadores, citados por engenheiro, foram retirados sem reposição
  • Empresa destaca uso de carvão; plano que repõe equipamento deve levar anos
  • Documentos do MPF apontam que Cedae não investe o que arrecada no sistema
  • Lucro da companhia vem aumentando nos últimos anos; em 2018, foram R$ 832 mi

A crise na água, que chega nas torneiras dos cariocas com sabor, cor e cheiro há um mês, poderia ter sido evitada se a Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos) investisse parte do lucro dos últimos anos em um equipamento usado para contornar um problema semelhante há quase 20 anos, revela um ex-diretor da estatal, em entrevista ao UOL.

Segundo o engenheiro químico Flávio Guedes, que dirigiu a área de produção de água da Cedae em 2001, o uso de raspadores de lodo nos decantadores da estação do Guandu foi fundamental para a retirada de algas no local. Hoje, ele critica a inexistência desse recurso na estatal, que registrou lucro de R$ 832 milhões em 2018.

Em sua defesa, a estatal disse ao UOL ter investido cerca de R$ 1,5 milhão na compra do lote do carvão ativado e do sistema para a sua aplicação no sistema de tratamento de água, feita no dia 23 de janeiro.

O problema, causado pela presença de geosmina, substância orgânica produzida por um tipo de alga, afeta 9 milhões de pessoas do Rio e de sete cidades da região metropolitana. Na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio), a criação de uma CPI sobre a crise aguarda a vez.

Havia muita presença de algas no Guandu. Então, diminuímos a operação e aumentamos a quantidade de descarga nos decantadores para não ter algas soltas por ali. Em sete dias, resolvemos o problema. Isso era feito com o uso de raspadores, que retiravam o lodo que ficava no fundo. Hoje, não há estrutura para adotar o mesmo tipo de procedimento. O sistema se deteriorou.
Flávio Guedes, ex-diretor da Cedae

Em nota, a Cedae disse que a atual gestão identificou a necessidade de colocar em operação os removedores de lodo nos decantadores da VETA (Velha Estação de Tratamento). Entretanto, a aquisição do equipamento faz parte de um plano de investimentos de cerca de R$ 700 milhões para a modernização da ETA Guandu, que só será concluído em dois anos. "A remoção do lodo vem sendo feita seguindo os procedimentos atuais de descarga e limpeza realizados por funcionários", informou a estatal.

Lucro como prioridade, apontam especialistas e MPF

Em ação penal, o MPF (Ministério Público Federal) fez referências aos altos lucros da empresa em contraste com a falta de investimentos em área de proteção ambiental onde explora recursos hídricos. As afirmações estão em um processo sobre o lançamento de esgoto não tratado em cinco estações diferentes, despejados na baía de Guanabara e no oceano Atlântico.

Na segunda-feira (27), a Justiça Federal do Rio de Janeiro aceitou a denúncia contra a Cedae pelo crime de poluição.

Em 2018, por exemplo, o lucro líquido da empresa foi de R$ 832 milhões, quase três vezes maior em comparação ao ano anterior — no documento, a promotoria aponta um ganho de cerca de R$ 280 milhões em 2017.

Especialistas e documentos analisados pelo UOL indicam um cenário de indicações políticas, deixando em segundo plano o investimento em melhorias, com demissões de funcionários experientes e equipamentos sucateados.

Professor de direito ambiental da FGV (Fundação Getúlio Vargas), Rômulo Sampaio se refere à situação do saneamento básico no Rio como uma tragédia anunciada. Tecnologia defasada, caos político e regulação confusa são apontados pelo especialista como os principais problemas do sistema.

"É inadmissível ter uma empresa que presta um serviço tão essencial para a população sem nenhuma meta de produtividade por regulação ou compromisso para investir. Estamos diante de uma estação com tecnologia ultrapassada, que não está preparada para lidar com o esgoto de 2020", observa.

Problema não é novo

Presidente da Cedae entre 2007 e 2015, Wagner Victer relaciona a crise às demissões de 54 especialistas no ano passado, que atingiram em cheio o quadro técnico da companhia.

O time técnico caiu. Com a saída de engenheiros experientes, a Cedae perdeu profissionais que poderiam ter evitado o problema. Muitas empresas se equivocam ao pensar que é possível terceirizar a engenharia. Certamente, houve erro. A Cedae vai ter que apurar o que aconteceu e punir os envolvidos.
Wagner Victer, ex-presidente da Cedae

A presença na Estação de Tratamento do Rio Guandu da geosmina não é exatamente uma novidade para a Cedae, diz Victer.

"A geosmina não é uma jabuticaba de agora. Adotávamos procedimentos operacionais, como fechar a captação e aumentar a vazão do Guandu, para evitar o problema".

Humberto Lemos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Saneamento e Meio Ambiente do Rio de Janeiro e Região (Sintsama-RJ), acredita que a crise só será solucionada se houver algum tipo de intervenção. "A Cedae pecou por não fazer obras de saneamento básico e esgoto, priorizando apenas o lucro. A função da estatal é levar água tratada e saneamento de qualidade para a população".