Fome, sede e ambulantes sem teto: uma noite de distribuição de comida no RJ
— Pode me dar duas? Eu não como nada desde sábado.
Era noite de terça-feira (14) quando a moradora de rua Telma, 38, se aproximou da caminhonete preta no centro do Rio. O relógio da torre da rua do Passeio marcava 20h quando diversos grupos tentavam alimentar os mais de 70 sem teto que se abrigavam na marquise de um prédio na esquina da rua Teixeira de Freitas com a avenida Augusto Severo.
As cem quentinhas e também garrafas d'água, caixas de leite, biscoitos e guaraná natural acabaram em 25 minutos, com uma fila pouco desrespeitada. Todos agradeciam e desejavam amor, bênçãos e saúde aos sete amigos que se dividam em dois carros para ajudar pessoas em condição de extrema pobreza.
Thiago, 35, era um deles. Desde os 16 vivendo nas ruas, o homem de voz calma se sentou em uma mureta baixa de uma cabine vazia da Polícia Militar para comer arroz, feijão, carne e purê de batata. Ao ser interpelado pela reportagem do UOL, abriu um sorriso e falou:
"O que o presidente [Jair Bolsonaro] e os outros políticos querem é que a gente morra. Os números nem precisam ser contabilizados, é só gente a menos para dividir tudo. Não faz falta para eles. Nós não somos pessoas para essas pessoas."
Ao seu lado estava Kevin, 40. Sem camisa e com uma mochila nas costas, brincou com a "teoria" do amigo de que moradores de rua são imunes ao coronavírus.
Temos medo, mas não temos como nos defender disso. Não estamos vendo esse 'inimigo'. E não dá para manter toda a higiene necessária morando nas ruas. (...) O que nos preocupa mesmo é não saber se vamos comer no dia seguinte.
Kevin, morador de rua
Ambulantes da Lapa passam necessidade
Pouco antes do prédio repleto de moradores de rua, o grupo de voluntários acompanhado pelo UOL parou no fim da rua do Riachuelo, quase nos Arcos da Lapa. Por ali, trabalhadores informais ocuparam um casarão e vivem de doações.
"Ninguém nos ajuda. Nós vivemos do trabalho na noite e, sem movimento, não temos o que comer ou onde morar", diz Helô, 49, que vende caipirinhas. Sua filha e três netos a acompanham na ocupação. Na noite da última terça, algumas pessoas haviam deixado o local, e "apenas" 15 quentinhas foram entregues.
Helô não era a única ambulante que perdeu o pouco que tinha com a quarentena do coronavírus. João, 61, trabalha como garçom em bares da Lapa, mas sem carteira assinada. Perambula pelos pés-sujos e limpos da região há duas décadas e nunca havia ficado sem teto.
Na idade de risco, está preocupado com a crise da covid-19. "Não temos nem papel higiênico e sabão, que dirá álcool em gel ou máscara. Precisamos de ajuda, mas os governantes não querem saber dos pobres", opina.
A caminhonete se despede com agradecimentos, afagos e elogios dos ajudados, como o versículo da Bíblia (Salmos 35:28) pichado na parede do casarão ocupado: "E assim a minha língua falará da tua justiça e do teu louvor todo o dia".
Dedicação integral à caridade na quarentena
Se autoridades públicas são criticadas por quem vive na miséria no Rio, a sociedade civil tem lançado mão da solidariedade para suprir as lacunas do Estado.
Sem a rotina de trabalho, a dedicação integral de um casal à caridade fez nascer o projeto Covid sem Fome. Com a participação de amigos, a iniciativa rapidamente se espalhou em rede pela cidade e centraliza voluntários, doações financeiras e de alimentos para ajudar a quem mais precisa.
Pedro Borges, 36, é fisioterapeuta e tem uma empresa de atendimento hospitalar domiciliar. Com o isolamento social, cessou as visitas aos pacientes, que foram substituídas por consultas online.
Em casa e sem trabalhar, se incomodou com a enxurrada de notícias tristes da pandemia do coronavírus e resolveu se arriscar para ajudar quem mais precisa. "Estava ficando louco. Resolvi ajudar. Está dando tudo certo e quero manter esse trabalho depois que passar essa situação."
Jacqueline Borges, sua esposa, tem a mesma idade e ideais de Pedro. Biomédica, dividiu-se nos primeiros dias de quarentena entre o trabalho em casa e a cozinha, onde preparava comida para entregar aos moradores de rua. Se no primeiro dia dois amigos fizeram as entregas, depois ela mesma foi às ruas ajudar. O choque foi o mesmo de todos os presentes: a fome preocupa mais que o coronavírus.
"São muitas pessoas que não tem absolutamente nada e, claro, precisam de tudo. Damos o que podemos e ajudamos o máximo de gente que encontramos pelas ruas. É dolorido a hora que alguém fica sem alguma coisa, uma impotência grande. Vimos grávidas, crianças e isso nos doeu muito. Mas sabemos que estamos fazendo algo para melhorar a situação delas", afirma.
A ideia do projeto é promover engajamento por núcleos nos bairros da cidade. Os moradores abraçariam os sem teto de cada região, atendendo o máximo possível de pessoas.
As ajudas não são apenas financeiras. O casal conseguiu, por exemplo, uma cozinha mais espaçosa em uma creche no Maracanã, na zona norte da cidade, cedida pelo dono —que também empresta seu carro para ajudar nas entregas. A alguns lugares, levam cestas básicas e itens de higiene pessoal, também como prevenção ao coronavírus.
As incursões são diárias, geralmente no centro, local com mais moradores de rua no Rio. E o projeto vai crescer: uma universidade cederá sua cozinha industrial para aumentar a produção de quentinhas.
Além do Covid sem Fome, várias outras iniciativas se multiplicaram pela internet para formar uma rede de ajuda aos moradores de rua durante a pandemia.
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