'Deus me protege': bairro do RJ onde Bolsonaro teve mais voto ignora corona
Não fosse pelo comércio fechado, um estranho diria que o bairro de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, leva vida normal durante a pandemia do novo coronavírus.
Enquanto o louvor tocava no último volume de uma caixa de som em uma banca de jornal, camelôs anunciavam seus produtos aos berros e pessoas conversavam aglomeradas em bancos de cimento na rua para pedestres. Inclusive idosos como seu Gentil, de 74 anos. Apesar de estar no grupo de risco para a covid-19, ele não teme a doença e diz que sua proteção é a religião.
"Deus me protege. Medo? Eu não tenho. Eu orei antes de sair. Rezo todos os dias. Que seja feita a vontade de Deus, mas Ele está me protegendo do vírus", afirmou o aposentado, que, contrapondo recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), saiu para fazer um empréstimo, mas esqueceu sua carteira de identidade em casa.
Campo Grande concentrou expressiva votação para Jair Bolsonaro (sem partido) nas eleições de 2018. Nas quatro zonas eleitorais, que compreendem os "satélites" Senador Vasconcelos e Inhoaíba, o presidente teve os desempenhos mais expressivos na capital fluminense: 74,5%, 74,9%, 75,1% e 75,4%.
Campo Grande é também um tradicional reduto de militares da ativa e da reserva, com vilas e conjuntos habitacionais de membros das Forças Armadas, grupo que costuma apoiar Bolsonaro. Ambos os fatos ajudam a entender o quanto seu discurso ecoa entre a população local e tem potencial para influenciar a percepção em relação à pandemia.
Desde a chegada do novo coronavírus ao país, o presidente fez repetidas aparições públicas referindo-se à covid-19 como uma "gripezinha" e minimizando os efeitos da pandemia mundial. Somente ontem Bolsonaro mudou o tom em pronunciamento à nação e admitiu que "o vírus é uma realidade", apesar de voltar a deturpar falas do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
As críticas de Bolsonaro ao isolamento social contrariam orientações da OMS, especialistas mundiais e mesmo o Ministério da Saúde. Porém, têm encontrado ressonância em algumas parcelas da população.
Em que pese a circulação de público menor que a habitual, o Calçadão de Campo Grande foi de longe o local mais cheio que a reportagem do UOL visitou nos dias de quarentena no Rio de Janeiro.
Se a maioria das lojas se mantiveram fechadas, isso não foi a opção de trabalhadores informais. "Não tem jeito, precisamos trabalhar. Estamos ganhando pouco, mas é melhor que nada", disse Wilson, 35, que vende acessórios para telefone celular.
As sete barraquinhas do segmento em um quarteirão tinham a competição de uma loja improvisada como um box, que aproveitava o coronavírus para fazer propaganda: "Sai da rua, vem para cá", dizia a gravação.
Lojas de fotografia, bolos, conserto de relógios e salões de beleza também permaneciam abertas. E o público, se não atingia o movimento normal, estava em grande número.
Carros em fila dupla, trânsito nas vias principais do entorno e vans funcionando sem fiscalização disputavam o espaço, mesmo com carros da Polícia Militar em volta. Aglomerações eram vistas em pontos de ônibus, lotéricas, agências bancárias e quiosques vendendo salgadinhos.
"É coisa da imprensa"
Ecoando o discurso do presidente até o início da semana, o pedreiro João, de 77 anos, disse não acreditar que o coronavírus seja tão perigoso. "Isso não existe, é coisa de vocês da imprensa", gritou, enquanto se afastava da reportagem: "Só parei porque achei que era da igreja".
Outro a minimizar a pandemia foi o porteiro Roberto, de 69 anos, que passa todos os dias pelas ruas do Calçadão de Campo Grande enquanto caminha de sua casa para o trabalho que complementa sua aposentadoria "muito pequena, ainda pior com a reforma". Ele culpou o Partido dos Trabalhadores pelas mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ainda que tenham sido propostas pelo então presidente Michel Temer (PMDB).
"Temos que acreditar primeiro em Deus. A imprensa, principalmente a grande mídia, é a mais sensacionalista possível. Criou, sim, uma histeria. O presidente Bolsonaro está correto quando diz isso, mas também acredito nos médicos e estou limpando mais as mãos. A preocupação é apenas com a minha esposa, que é diabética, hipertensa e 'tirou' um câncer", opinou.
Funcionário de uma banca de jornal, Marcelo, 26, trabalhava sozinho em um balcão que lhe garantia o distanciamento social indicado pela OMS. Ainda assim, estava com receio: "Preciso trabalhar, meu patrão mandou, mas o movimento está péssimo".
Uma comerciante que preferiu não se identificar defendeu as ideias de Jair Bolsonaro. Para ela, a crise econômica será pior que o coronavírus, e o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) deveria ordenar a reabertura do comércio.
"Não vamos morrer de fome porque o [Donald] Trump vai mandar R$ 300 bilhões. Mas, se o comércio fechar, o desemprego vai aumentar igual à época do PT, e aí muita gente vai querer saquear nossas lojas e mercados. Vai virar guerra civil", declarou. Informada de que a notícia não era totalmente verdadeira, levantou a voz: "Esse complô da imprensa comunista não vai derrubar o [Jair] Bolsonaro", finalizou.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.