Topo

'Deus me protege': bairro do RJ onde Bolsonaro teve mais voto ignora corona

Aglomeração em Campo Grande, onde pessoas desrespeitavam recomendações da OMS - Caio Blois/UOL
Aglomeração em Campo Grande, onde pessoas desrespeitavam recomendações da OMS Imagem: Caio Blois/UOL

Caio Blois

Do UOL, no Rio de Janeiro (RJ)

01/04/2020 04h00

Não fosse pelo comércio fechado, um estranho diria que o bairro de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, leva vida normal durante a pandemia do novo coronavírus.

Enquanto o louvor tocava no último volume de uma caixa de som em uma banca de jornal, camelôs anunciavam seus produtos aos berros e pessoas conversavam aglomeradas em bancos de cimento na rua para pedestres. Inclusive idosos como seu Gentil, de 74 anos. Apesar de estar no grupo de risco para a covid-19, ele não teme a doença e diz que sua proteção é a religião.

"Deus me protege. Medo? Eu não tenho. Eu orei antes de sair. Rezo todos os dias. Que seja feita a vontade de Deus, mas Ele está me protegendo do vírus", afirmou o aposentado, que, contrapondo recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), saiu para fazer um empréstimo, mas esqueceu sua carteira de identidade em casa.

Seu Gentil, de 74 anos, não teme coronavírus: "Deus me protege" - Caio Blois/UOL - Caio Blois/UOL
Seu Gentil, de 74 anos, não teme coronavírus: "Deus me protege"
Imagem: Caio Blois/UOL

Campo Grande concentrou expressiva votação para Jair Bolsonaro (sem partido) nas eleições de 2018. Nas quatro zonas eleitorais, que compreendem os "satélites" Senador Vasconcelos e Inhoaíba, o presidente teve os desempenhos mais expressivos na capital fluminense: 74,5%, 74,9%, 75,1% e 75,4%.

Campo Grande é também um tradicional reduto de militares da ativa e da reserva, com vilas e conjuntos habitacionais de membros das Forças Armadas, grupo que costuma apoiar Bolsonaro. Ambos os fatos ajudam a entender o quanto seu discurso ecoa entre a população local e tem potencial para influenciar a percepção em relação à pandemia.

Desde a chegada do novo coronavírus ao país, o presidente fez repetidas aparições públicas referindo-se à covid-19 como uma "gripezinha" e minimizando os efeitos da pandemia mundial. Somente ontem Bolsonaro mudou o tom em pronunciamento à nação e admitiu que "o vírus é uma realidade", apesar de voltar a deturpar falas do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.

As críticas de Bolsonaro ao isolamento social contrariam orientações da OMS, especialistas mundiais e mesmo o Ministério da Saúde. Porém, têm encontrado ressonância em algumas parcelas da população.

Em que pese a circulação de público menor que a habitual, o Calçadão de Campo Grande foi de longe o local mais cheio que a reportagem do UOL visitou nos dias de quarentena no Rio de Janeiro.

Se a maioria das lojas se mantiveram fechadas, isso não foi a opção de trabalhadores informais. "Não tem jeito, precisamos trabalhar. Estamos ganhando pouco, mas é melhor que nada", disse Wilson, 35, que vende acessórios para telefone celular.

As sete barraquinhas do segmento em um quarteirão tinham a competição de uma loja improvisada como um box, que aproveitava o coronavírus para fazer propaganda: "Sai da rua, vem para cá", dizia a gravação.

Lojas de fotografia, bolos, conserto de relógios e salões de beleza também permaneciam abertas. E o público, se não atingia o movimento normal, estava em grande número.

Carros em fila dupla, trânsito nas vias principais do entorno e vans funcionando sem fiscalização disputavam o espaço, mesmo com carros da Polícia Militar em volta. Aglomerações eram vistas em pontos de ônibus, lotéricas, agências bancárias e quiosques vendendo salgadinhos.

Com comércio informal, ruas de Campo Grande estiveram cheias na quarentena do coronavírus - Caio Blois/UOL - Caio Blois/UOL
Com comércio informal, ruas de Campo Grande estiveram cheias na quarentena do coronavírus
Imagem: Caio Blois/UOL

"É coisa da imprensa"

Ecoando o discurso do presidente até o início da semana, o pedreiro João, de 77 anos, disse não acreditar que o coronavírus seja tão perigoso. "Isso não existe, é coisa de vocês da imprensa", gritou, enquanto se afastava da reportagem: "Só parei porque achei que era da igreja".

Outro a minimizar a pandemia foi o porteiro Roberto, de 69 anos, que passa todos os dias pelas ruas do Calçadão de Campo Grande enquanto caminha de sua casa para o trabalho que complementa sua aposentadoria "muito pequena, ainda pior com a reforma". Ele culpou o Partido dos Trabalhadores pelas mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ainda que tenham sido propostas pelo então presidente Michel Temer (PMDB).

"Temos que acreditar primeiro em Deus. A imprensa, principalmente a grande mídia, é a mais sensacionalista possível. Criou, sim, uma histeria. O presidente Bolsonaro está correto quando diz isso, mas também acredito nos médicos e estou limpando mais as mãos. A preocupação é apenas com a minha esposa, que é diabética, hipertensa e 'tirou' um câncer", opinou.

Comércio fechou, mas ruas de Campo Grande estiveram cheias nesta terça-feira (31) - Caio Blois/UOL - Caio Blois/UOL
Comércio fechou, mas ruas de Campo Grande estiveram cheias nesta terça-feira (31)
Imagem: Caio Blois/UOL

Funcionário de uma banca de jornal, Marcelo, 26, trabalhava sozinho em um balcão que lhe garantia o distanciamento social indicado pela OMS. Ainda assim, estava com receio: "Preciso trabalhar, meu patrão mandou, mas o movimento está péssimo".

Uma comerciante que preferiu não se identificar defendeu as ideias de Jair Bolsonaro. Para ela, a crise econômica será pior que o coronavírus, e o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) deveria ordenar a reabertura do comércio.

"Não vamos morrer de fome porque o [Donald] Trump vai mandar R$ 300 bilhões. Mas, se o comércio fechar, o desemprego vai aumentar igual à época do PT, e aí muita gente vai querer saquear nossas lojas e mercados. Vai virar guerra civil", declarou. Informada de que a notícia não era totalmente verdadeira, levantou a voz: "Esse complô da imprensa comunista não vai derrubar o [Jair] Bolsonaro", finalizou.