Com vaquinha e delivery, bares do RJ tentam resistir à crise do coronavírus
As portas abertas pela metade revelam incertezas entre copos vazios, cadeiras de cabeça para baixo sobre as mesas e o olhar triste no balcão. Diferente das risadas costumeiras do local onde o carioca anestesia suas dores, os botequins do Rio de Janeiro tentam de todo jeito resistir à crise do coronavírus. Com vaquinhas e estrangeirismos como vouchers, take away e o já popular delivery, os botecos da cidade penam para driblar a quarentena forçada pela covid-19.
"Morro de medo do coronavírus, claro. Mas precisamos abrir as portas porque se não teremos que fechá-las de vez", diz Tinoco, 54, dono do bar que leva seu nome na Usina, bairro da zona norte carioca. Ao menos até o dia 30 deste mês, bares devem limitar o atendimento ao público a 30% da sua capacidade de lotação, segundo decreto do governo fluminense.
No balcão, os antipáticos mas necessários álcool em gel, máscaras e luvas se confundem entre ovos coloridos, pedaços de carne, salgadinhos e caixas de cerveja improvisadas para impedir a passagem de pessoas. Mesmo em tempos de epidemia, há quem se arrisque.
"Estou levando vida normal. Não tenho medo desse vírus. Tinha mais medo de trabalhar até os 70 anos, como quase aconteceu por causa da reforma trabalhista. Me aposentei correndo", brinca Cícero Silva, 64, que ostentava uma cerveja quase congelando no Brotos Bar, no Maracanã. "Me esforcei a vida toda para ter essa vida. Ela passa como um trem e não posso deixar que não pare na minha estação", filosofa.
Os novatos são os mais penalizados. Os sorrisos ao receber a reportagem do UOL viraram lágrimas ao comentar a situação financeira. "Peguei o bar tem dois meses para tentar levantá-lo. Estamos quebrados. Não vamos resistir sem ajuda do governo", conta João Santos, 55, que não consegue estimar o prejuízo. "Tudo está atrasado. Acredito que nada tão tradicional esteja sofrendo como os botequins", emociona-se.
Mas se engana quem pensa que os bares mais famosos não sofrem com a crise. Bicampeão carioca do Comida Di Buteco, o Bar do David há menos de um ano abriu uma unidade em Copacabana e também sente os efeitos do coronavírus. E, se não fosse pela iniciativa dos funcionários, a situação seria pior.
"Eles se propuseram a receber 50% e trabalhar apenas 15 dias no mês. Fechei o bar 'lá de cima' [na comunidade Chapéu Mangueira, no bairro vizinho do Leme] e criei turnos por aqui. Minha maior preocupação é com os funcionários", crê David Bispo, 48.
Além da crise, o Bar do David sofreu com um problema inusitado. Ao modificar sua foto e data de criação do bar no Facebook, teve a página bloqueada e não consegue retomá-la. "Tratam o bar como menor de idade porque oficializamos a estrutura apenas em 2010. Nascemos como uma birosca na favela e hoje estamos aqui com a ajuda dos clientes, que não nos abandonam nem na crise. Os tradicionais tendem a sofrer menos no futuro, mas hoje também estão mal", analisa.
Cervejarias e clientes 'chegam junto' em vaquinhas
Diversos bares contam com parcerias para passar pelo momento difícil. Em disputa constante pelo mercado, cervejarias criaram mecanismos de ajuda para os estabelecimentos.
A Ambev, que abastece com exclusividade a maior fatia de bares no país, encabeça o movimento "Apoie um restaurante" reunindo "pés-sujos", "pés-limpos" e "grã-finos" —a empresa criou vouchers de 50% de desconto para os clientes, que adiantam os valores para auxiliar bares e restaurantes durante a crise.
A concorrente Heineken também abraçou parceiros exclusivos na campanha Brinde do Bem, e outras correntes foram feitas pelos próprios comerciantes para ajudar a quem mais precisa.
"Essa campanha está nos levantando um pouco. Não fosse essa ajuda, estaríamos piores. Vamos levando como dá. Tem gente pior. Quero usar meu bar também para arrecadar alimentos para doar nas comunidades do Leme com o projeto 'Cozinha Solidária'", afirma David, do famoso bar que leva seu nome.
Um dos mais queridos da cidade, o Bar Madrid criou uma vaquinha própria. A meta leva em conta uma paralisação de três a quatro meses no movimento, que está baixo. Enquanto isso, enfrenta a crise apostando nas entregas e aprendendo com as dificuldades.
"A vaquinha está nos ajudando bastante. Estamos com muita coisa atrasada, mas com os clientes chegando junto deu pra gente segurar as pontas. O movimento está fraco, e a gente não tinha entrega, estamos tomando porrada mas aprendendo", conta André Quintans, um dos donos do bar espanhol na Tijuca.
Até a publicação desta reportagem, o Madrid havia arrecadado ao menos R$ 25,5 mil dos R$ 55 mil pedidos. "Está difícil, mas vamos passar por isso. Nossos clientes nos abraçaram, diferente do governo", resume.
Entregas e promoções como estratégia
Ainda que não estejam acostumados ao atendimento por aplicativos, muitos bares apostam no delivery. A entrega é a principal estratégia dos estabelecimentos na resistência à crise do coronavírus.
"Demos sorte por termos começado antes e sabermos mais ou menos como fazer. Já criamos uma clientela de entregas e isso nos ajudou", diz Antônio Silva, 47, do Porto Fino, no Flamengo. "Caiu só 50%. Parece muito, mas perto de outros bares, está melhor."
Outros bares apostam na redução dos preços para conquistar mais clientes. No Grajaú, o tradicional Bar do Mariano baixou o preço de todas a cervejas. Por lá, uma Estrella Galícia sai a R$ 7 e a entrega é feita em casa, cobrando um valor pelo "casco".
Outro dos "pés-sujos" da zona norte, o Nasceu do Sol dá descontos em todas as cervejas. Preferência da maioria, a Brahma sai a R$ 6. No aplicativo Zé Delivery, que criou uma rede de entrega de bebidas, a artesanal paulista Colorado é a queridinha e sai até por R$ 9,90.
Quarentena difícil para os mais experientes
Acostumados ao dia-a-dia dos bares, os donos mais velhos —e consequentemente na idade de risco do coronavírus— sentem ainda mais os efeitos da quarentena. Para além do lado financeiro, o bem-estar dos "coroas" está diretamente afetado pela diminuição das atividades.
Marcelo Almeida, filho de Seu Manuel, 75, o Portuga, do Bar do Portuga, de Botafogo, travou uma batalha doméstica pelo cumprimento da quarentena. "Consegui 'prender' meu pai em casa [risos]. Ele queria sair, mas se convenceu ao ver que, em Portugal, estão todos trancados. É hora de trabalhar um pouquinho por ele. Tem 16 dias que não sai de casa. Está preocupado, mas vamos passar por isso."
Já Raimundo, do Gatão, no centro, apesar dos 70 anos, "venceu" a disputa com Delmo, 36, e segue trabalhando no bar, mas com restrições. "Difícil segurar ele em casa. Mas consegui negociar para que venha pouco. Foi o que deu", diz o filho.
"Venho, fico algumas horas e volto. Já não aguento mais ficar em casa. Eu mesmo não deixo que entre mais do que tem aqui [cerca de 10 pessoas, respeitando distância de isolamento social]. E se for velho que nem eu, mando ir para casa!", diz Seu Raimundo.
Donos relutam em demitir funcionários
Se o governo ainda não oficializou um pacote de ajuda para pequenos e médios comerciantes, donos de bares tentam, a duras penas, manter seus empregados.
"Deixei os funcionários em casa. São mais ou menos 15, e só tem seis trabalhando. Alguns que moram mais longe nem revezando estão, porque a passagem é cara e eu acabaria expondo eles ao vírus no transporte público. Paguei o que pude para eles adiantado e agora divido tudo que entra por todos. Eles precisam mais que eu. Não estou lucrando nada, mas seguirei ajudando. ", diz Antônio Silva, 45, do tradicional Chico's, no Maracanã.
Dono do "único bar do Rio de Janeiro com título nacional" do Comida di Buteco, em 2016, David pensa igual. "Se tiver comida no meu prato terá no deles. Estou fazendo o impossível para não cortar ninguém. Vamos passar por isso", afirma o comerciante.
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